Contrato Intermitente: Análise Jurídica e Prática
Você provavelmente já ouviu falar que a Reforma Trabalhista trouxe ferramentas novas para a nossa caixa de ferramentas jurídicas. O contrato de trabalho intermitente é, sem dúvida, a peça mais polêmica e, ao mesmo tempo, a mais inovadora dessa legislação. Não estamos falando de um simples “bico” formalizado. Estamos lidando com uma modalidade contratual robusta, prevista na CLT, que exige de você, como empregador ou gestor, uma precisão cirúrgica na aplicação para evitar passivos trabalhistas futuros. Imagine ter uma equipe de prontidão que você só paga quando realmente precisa. Parece o melhor dos mundos para a eficiência operacional, não é? Mas o Direito, meu caro, cobra seu preço nos detalhes e na formalidade.
A ideia central aqui é a descontinuidade. Diferente do contrato padrão que você assina com seu gerente, onde ele bate ponto todo dia, o intermitente vive de períodos de atividade e inatividade. A lei permite que você tenha esse funcionário na sua base, registrado, mas ele só recebe e só trabalha quando você o chama. Isso resolve aquele velho problema de ter funcionários ociosos em horários de baixo movimento ou em dias parados. Você paga pela produtividade efetiva e pelo tempo à disposição apenas quando convocado. É uma mudança de paradigma que quebra a rigidez da jornada de 8 horas diárias ininterruptas que herdamos da era industrial.
No entanto, preciso ser franco com você sobre os riscos. Não confunda flexibilidade com ausência de regras. O legislador criou um rito muito específico para que essa mágica aconteça. Se você tratar o intermitente como um funcionário comum, exigindo presença diária sem a devida convocação formal, ou se pagar “por fora”, você estará criando uma bomba relógio. O contrato intermitente exige uma mudança de mindset na gestão de RH. Você deixa de gerir apenas horários e passa a gerir convocações, aceites e pagamentos fracionados. Vamos mergulhar nas minúcias jurídicas disso para que você opere com segurança.
A Natureza Jurídica e o Conceito do Trabalho Intermitente
A definição legal que temos hoje no artigo 443, parágrafo 3º da CLT, é o nosso ponto de partida obrigatório. O legislador definiu o contrato intermitente como aquele em que a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua. Essa é a chave mestra: a não continuidade. Ocorrem alternâncias de períodos de prestação de serviços e de inatividade. Esses períodos podem ser determinados em horas, dias ou meses. Você precisa entender que, durante a inatividade, o contrato não está suspenso no sentido clássico, mas está em um estado de latência. O vínculo existe, a carteira está assinada, mas não há salário nem tempo de serviço contando, a menos que haja trabalho efetivo.
Outro ponto crucial é a manutenção da subordinação jurídica. Muita gente confunde o intermitente com o autônomo, e esse é um erro fatal em uma reclamação trabalhista. O autônomo dirige a própria prestação de serviço e não deve satisfação de horário ou hierarquia da mesma forma. O trabalhador intermitente, quando aceita o chamado, é seu empregado. Ele deve usar uniforme se você mandar, deve seguir seus protocolos e obedece às suas ordens. A diferença é que essa subordinação é “liga-desliga”. Quando ele está em casa no período de inatividade, ele não lhe deve nada. Pode até trabalhar para o seu concorrente se quiser. Mas, ao pisar na sua empresa após o aceite, ele é um funcionário CLT completo.
Essa distinção nos leva a compreender a volatilidade desse vínculo. O contrato intermitente foi desenhado para demandas sazonais ou picos de produção imprevisíveis. Pense no dono de um buffet que precisa de 20 garçons no sábado, mas apenas dois na segunda-feira. Ou uma fábrica que recebe um pedido gigante de última hora. Se você tentar usar essa modalidade para substituir um posto de trabalho que é, por natureza, fixo e contínuo, como uma recepcionista que precisa estar lá de segunda a sexta, você estará fraudando a lei. O judiciário está de olho nisso. A natureza do trabalho deve justificar a intermitência. Não force a barra para reduzir custos onde a demanda é permanente.
Formalidades Essenciais na Celebração do Contrato
Ao decidir contratar alguém nessa modalidade, esqueça o acordo verbal. O Direito do Trabalho é formalista e, neste caso específico, a lei exige expressamente que o contrato de trabalho intermitente seja celebrado por escrito. Isso é um requisito de validade. Se não estiver no papel, presume-se que é um contrato por prazo indeterminado comum, e você terá que pagar todas as horas que ele ficou em casa. No instrumento contratual, deve constar claramente o valor da hora de trabalho. Você não pode deixar isso em aberto para negociar a cada chamada. A regra do jogo deve estar clara desde o dia um.
Sobre o valor da hora, o princípio da isonomia deve ser seu guia. Você não pode pagar ao intermitente menos do que paga aos seus funcionários fixos que exercem a mesma função. Se o seu vendedor fixo ganha o equivalente a R
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20,00. E, claro, nunca abaixo do salário mínimo hora ou do piso da categoria. Isso evita que o contrato intermitente seja usado para precarização salarial direta. Você economiza nos encargos do tempo ocioso, não no valor do trabalho em si. A justiça salarial deve ser mantida para evitar o passivo de equiparação salarial lá na frente.
Além do contrato físico assinado, você tem a obrigação do registro na Carteira de Trabalho Digital. A anotação deve especificar que se trata de contrato intermitente. Isso é vital para o sistema do eSocial entender como processar os recolhimentos desse trabalhador. Sem essa anotação correta, o sistema vai cobrar encargos como se ele fosse um mensalista, gerando inconsistências tributárias para sua empresa. A formalização correta é a sua primeira linha de defesa. Um contrato bem redigido, especificando locais de prestação de serviço, turnos prováveis e canais de comunicação para a convocação, é o melhor investimento preventivo que você pode fazer.
O Rito Processual da Convocação e da Oferta
A convocação é o coração pulsante desse contrato e funciona quase como um ato processual. A lei estipula que você, empregador, deve convocar o trabalhador com pelo menos três dias corridos de antecedência. Não é recomendável mandar um WhatsApp na noite anterior pedindo para ele vir trabalhar às 8 da manhã. Você precisa planejar sua demanda. Essa convocação deve informar a jornada, o local e o período exato. Use meios que deixem rastro. E-mail, telegrama ou aplicativos de mensagem corporativa são excelentes, desde que você guarde o registro do envio e do recebimento.
Do outro lado, o trabalhador tem o prazo de um dia útil para responder. Aqui entra uma peculiaridade interessante: o silêncio importa em recusa. No Direito Civil, quem cala consente em algumas situações, mas aqui, quem cala recusa. Se o trabalhador não responder, você deve assumir que ele não vai e não pode puni-lo por isso. A recusa é um direito dele. Ele pode ter outro compromisso, estar trabalhando em outro lugar ou simplesmente não querer ir naquele dia. Você não pode aplicar advertência ou suspensão porque ele não aceitou o chamado. Essa liberdade é a contrapartida da instabilidade que ele sofre.
Agora, atenção para o cenário onde o acordo é fechado. Se você chama e ele aceita, cria-se um compromisso firme. Se qualquer uma das partes descumprir esse combinado sem motivo justo, incide uma multa de 50% sobre a remuneração que seria devida no período. Se ele aceitou e não foi, ele te deve 50%. Se você chamou, ele aceitou, e você cancelou em cima da hora porque o movimento caiu, você deve 50% a ele. Essa multa serve para garantir seriedade na relação. O objetivo é evitar que você use o tempo do trabalhador de forma leviana e que o trabalhador deixe você na mão com a operação montada.
A Engenharia da Remuneração e Pagamento
A forma de pagamento no contrato intermitente é radicalmente diferente do mensalista. Você não espera o quinto dia útil do mês seguinte. O pagamento deve ser feito imediatamente ao final de cada período de prestação de serviço. Se ele trabalhou três dias, no final do terceiro dia você deve quitar tudo. O recibo de pagamento deve ser discriminado, item por item. Não adianta fazer um PIX com o valor total e achar que está resolvido. O recibo tem que ser uma “autópsia” financeira detalhada do que está sendo pago para garantir a quitação legal.
O que deve constar nesse recibo? Tudo. Você paga a remuneração (as horas trabalhadas), mas também já adianta as férias proporcionais com o terço constitucional, o décimo terceiro salário proporcional, o repouso semanal remunerado (DSR) e os adicionais legais (insalubridade, noturno, etc.). É como se você fizesse uma mini rescisão a cada serviço prestado. O trabalhador leva o dinheiro “limpo” e completo para casa. Isso gera uma sensação de liquidez imediata para o empregado, mas exige do seu departamento pessoal uma agilidade monstra para calcular e emitir esses recibos em tempo real.
Sobre o INSS e o FGTS, a responsabilidade do recolhimento continua sendo sua, empregador. Você deve recolher com base no valor pago no mês e fornecer os comprovantes ao trabalhador. Aqui reside um ponto de atenção: se o total que o trabalhador recebeu no mês (somando todos os bicos intermitentes dele) for inferior ao salário mínimo, a contribuição previdenciária dele não conta para a aposentadoria, a menos que ele pague a diferença do bolso dele. É ético e recomendável que você oriente seu prestador sobre isso. A transparência fortalece a relação e evita que ele alegue desconhecimento no futuro, dizendo que você não o orientou sobre seus direitos previdenciários.
O Gozo de Direitos e o Período de Inatividade
Você deve estar se perguntando como funcionam as férias, já que você as paga todo mês. O direito ao gozo das férias continua existindo. A cada 12 meses de contrato, o empregado adquire o direito de usufruir de um mês de férias, nos 12 meses subsequentes. A diferença é que ele não recebe nada quando sai de férias, pois você já antecipou o pagamento proporcional a cada convocação. Ele tira o tempo para descanso, você fica proibido de convocá-lo nesse período, mas o bolso dele não vê cor de dinheiro novo. É apenas o descanso físico e mental garantido por lei.
Durante o período de inatividade, quando ele não está de férias nem convocado, ele é um cidadão livre. A lei é clara ao dizer que esse tempo não se considera tempo à disposição do empregador. Isso significa que você não paga salário, e ele não cumpre ordens. Se você começar a exigir que ele fique “de plantão” ao lado do telefone, proibindo-o de viajar ou de pegar outros trabalhos, você descaracteriza a inatividade. Isso pode transformar o contrato em indeterminado e gerar um passivo de horas extras gigantesco. Respeite a liberdade dele. A inatividade é dele, não sua.
Quanto aos benefícios previdenciários, o trabalhador intermitente tem acesso ao auxílio-doença e salário-maternidade, desde que respeitada a carência e a qualidade de segurado. No caso do salário-maternidade, o pagamento é feito diretamente pela Previdência Social, e não pela empresa, o que difere da regra geral para empregados fixos. É fundamental que você mantenha o eSocial alimentado corretamente. Se houver falha na informação das remunerações, o benefício dele pode ser negado ou calculado errado, e adivinhe quem ele vai processar para pedir indenização por danos morais e materiais? Exatamente, você.
Extinção do Contrato e Verbas Rescisórias
A rescisão desse contrato também tem suas peculiaridades. Quando o contrato chega ao fim, seja por vontade sua ou do empregado, precisamos calcular o que sobrou para pagar. Como férias e 13º já foram pagos mês a mês, a rescisão costuma ser “magra”. No entanto, se a demissão for sem justa causa, você deve pagar a indenização de 20% sobre o saldo do FGTS (note que é 20%, e não 40% como no contrato comum, se for por acordo, mas a regra geral tende a seguir a CLT, então cuidado com a modalidade de desligamento). O aviso prévio também é devido, mas é indenizado pela metade.
O cálculo do aviso prévio é uma das maiores dores de cabeça dos contadores. A lei manda considerar a média dos valores recebidos pelo empregado no período de atividade. Você pega o que ele ganhou nos últimos 12 meses, faz a média, e paga metade do aviso prévio indenizado sobre essa base. O saque do FGTS é permitido em até 80% do valor depositado. E aqui vai um balde de água fria para o trabalhador: quem é demitido do contrato intermitente não tem direito ao Seguro-Desemprego. O legislador entendeu que, por ser um contrato auxiliar, não justifica o benefício.
A justa causa aplica-se normalmente. Se o trabalhador roubar, agredir, ou cometer desídia grave durante a prestação do serviço, você pode demiti-lo por justa causa. E lembre-se daquela multa de 50% que mencionei antes? Se ele aceitar o chamado e não aparecer repetidas vezes, causando prejuízo, isso pode configurar insubordinação ou desídia, fundamentando uma justa causa. Mas, como bom advogado, sugiro cautela. Aplique advertências e suspensões antes. Construa a prova da má conduta. Demitir por justa causa exige robustez probatória, independentemente do tipo de contrato.
Blindagem Jurídica na Implementação
Agora vamos falar de estratégia, de como proteger o seu negócio. O maior risco do contrato intermitente é a descaracterização. Isso acontece quando a empresa usa o contrato intermitente para mascarar uma relação que, na verdade, é contínua. Se você chama o mesmo trabalhador toda segunda, quarta e sexta, há dois anos, sem falhar, você criou uma expectativa de direito. O juiz pode olhar para isso e dizer: “Isso não é eventual, isso é fixo”. Para se blindar, rotacione a equipe. Tenha um pool de intermitentes e alterne as convocações. Evite padrões rígidos e repetitivos que sugiram escala fixa.
A gestão documental é sua armadura. Você precisa ter prova de cada convocação e de cada aceite. Não apague as conversas de WhatsApp. Melhor ainda, use um sistema ou e-mail corporativo. Se o trabalhador processar você dizendo que trabalhou 200 horas e você só pagou 100, ou que ficou à disposição sem receber, é o registro das convocações que vai te salvar. O ônus da prova muitas vezes se inverte contra a empresa. Se você não tiver organização, a palavra do trabalhador terá um peso enorme. Crie pastas digitais para cada funcionário com todo o histórico de chamados.
Implemente uma política de compliance interna. Treine seus gerentes. Eles são a ponta da lança e onde os problemas começam. O gerente de loja que, na pressa, chama o funcionário de boca e diz “depois a gente acerta”, está colocando a empresa em risco. Estabeleça um protocolo rígido: ninguém começa a trabalhar sem o aceite formalizado no sistema. O rigor nos procedimentos não é burocracia, é segurança jurídica. Um passivo trabalhista pode comer todo o lucro que você obteve com a flexibilidade da contratação.
Contencioso e Jurisprudência Atual
Para encerrar nossa conversa técnica, precisamos olhar para o que os tribunais estão decidindo. O Supremo Tribunal Federal (STF) validou a constitucionalidade do contrato intermitente. Isso nos dá um chão firme para pisar. Havia muita discussão se isso violava a dignidade da pessoa humana ou a proteção social, mas a corte suprema decidiu que o modelo é válido. Porém, validade constitucional não significa cheque em branco para abusos. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem sido rigoroso na análise de casos onde há fraude.
A jurisprudência tem batido forte na questão da “habitualidade excessiva”. Existem decisões revertendo contratos intermitentes para contratos por tempo indeterminado quando se prova que o trabalhador cumpria jornada cheia, todo dia, por meses a fio. O entendimento é que o contrato intermitente serve para o excepcional, não para o ordinário. Se a sua necessidade é de alguém todo dia, contrate um mensalista ou um part-time (tempo parcial). Não tente usar o intermitente como um “mensalista barato” sem os encargos de descanso e aviso prévio integral.
Outro ponto de contencioso é o respeito às normas coletivas. Verifique sempre a Convenção Coletiva da categoria (CCT). Alguns sindicatos proibiram ou regularam de forma mais estrita o uso de intermitentes em suas bases, e, embora a Reforma Trabalhista diga que o negociado prevalece sobre o legislado, brigar contra o sindicato é custoso e desgastante. Se a CCT exige um piso específico ou um benefício extra para o intermitente, cumpra. O custo de ignorar a norma coletiva costuma vir acompanhado de multas pesadas e honorários advocatícios sucumbenciais que você não vai querer pagar.
Comparativo Estratégico de Contratação
Para facilitar sua visualização, preparei este quadro comparativo. Ele coloca o Contrato Intermitente lado a lado com seus “concorrentes” diretos: o Contrato por Prazo Determinado (como o de experiência ou obra certa) e o Contrato Temporário (Lei 6.019, aquele terceirizado via agência).
| Aspecto | Contrato Intermitente (CLT) | Contrato Determinado (CLT) | Contrato Temporário (Lei 6.019) |
| Continuidade | Descontínuo (períodos de inatividade). | Contínuo durante a vigência do prazo. | Contínuo durante a necessidade transitória. |
| Pagamento | Ao final de cada convocação (imediato). | Mensal (até o 5º dia útil). | Mensal (via agência de trabalho). |
| Custo Rescisório | Baixo (verbas antecipadas mensalmente). | Médio (indenização se quebrar antes do prazo). | Baixo (sem aviso prévio ou multa de 40% FGTS ao fim do prazo). |
| Flexibilidade | Alta (convoca quando precisa). | Baixa (tem data certa para acabar). | Média (limitado a 180 dias + 90 prorrogação). |
| Gestão | Direta pela sua empresa. | Direta pela sua empresa. | Terceirizada (Agência faz a gestão). |
Espero que essa análise tenha clareado o terreno para você. O contrato intermitente é uma ferramenta poderosa, mas exige manuseio técnico. Use-o com sabedoria estratégica e rigor formal. Se precisar desenhar esses contratos ou revisar suas práticas atuais, estou à disposição para aprofundarmos nos detalhes específicos do seu negócio.
