Multipropriedade (Time Sharing): O Guia Definitivo do Seu Advogado
Sente-se, pegue um café. Precisamos ter uma conversa séria, mas descontraída, sobre aquele convite tentador que você recebeu nas suas últimas férias. Sabe do que estou falando, não é? Aquele resort maravilhoso, um espumante de cortesia e uma oportunidade “única” de ser dono de um pedaço do paraíso. Vamos dissecar juridicamente e praticamente o instituto da Multipropriedade, muitas vezes confundido com o Time Sharing, para que você não assine nada no calor da emoção sem entender onde está amarrando seu patrimônio.
O Que é Multipropriedade: Desvendando o “Condomínio de Tempo”
Quando falamos de multipropriedade, ou fractional ownership para os que gostam de termos importados, estamos tratando de uma engenharia jurídica brilhante, mas que exige cautela. Imagine que você quer comprar uma casa de praia de alto padrão. O custo é proibitivo para a maioria e, convenhamos, você só vai usar a casa por trinta dias no ano. O imóvel ficaria vazio, gerando custos, maresia e dor de cabeça nos outros onze meses. A solução do mercado foi fatiar esse imóvel não em pedaços físicos, como quartos ou salas, mas em pedaços de tempo.
Você não está comprando apenas o direito de usar; você está comprando a parede, o tijolo, o chão, mas apenas por uma fração do ano. É o que chamamos no Direito Civil de propriedade imobiliária plena, porém fracionada temporalmente. Isso significa que você terá uma Escritura Pública registrada no Cartório de Registro de Imóveis (RGI). Não é um título de clube, não é uma diária de hotel glorificada. É um bem imóvel real, que entra na sua declaração de Imposto de Renda e que pode ser penhorado se você dever a Deus e ao mundo.
Essa distinção é crucial porque muda toda a regra do jogo. Ao deter uma fração ideal, você se torna coproprietário da coisa toda. O Código Civil Brasileiro, após muita luta doutrinária, abraçou esse instituto com a Lei 13.777 de 2018. Antes disso, vivíamos num limbo jurídico perigoso. Agora, a lei diz com todas as letras que cada fração de tempo é uma unidade autônoma. Você é dono daquela semana de julho ou daquele período flutuante, e ninguém pode tirar isso de você sem o devido processo legal, diferentemente de um simples contrato de hospedagem que pode ser rompido com uma multa qualquer.
O conceito de fração ideal e tempo fixo[1]
Para entender a fração ideal, pense nela como uma pizza. O imóvel é a pizza inteira. A multipropriedade corta essa pizza em 13, 26 ou 52 fatias, dependendo se as frações são de quatro, duas ou uma semana. Quando você compra uma cota, você não está levando a pizza para casa; você está garantindo que, quando a fome bater (ou seja, nas suas férias), aquela fatia específica estará reservada, quentinha e pronta exclusivamente para você. Juridicamente, sua fração é inseparável do imóvel e da mobília, o que chamamos de adernamento.
A questão do tempo fixo versus tempo flutuante é onde muitos dos meus clientes se confundem. No modelo de tempo fixo, você compra, por exemplo, a “Semana 52” do ano, que geralmente é o Réveillon. É sua, faça chuva ou faça sol. Já no sistema flutuante, que é mais comum e mais barato, você compra o direito a usar uma semana de “Alta Temporada”, mas precisa brigar no sistema de reservas com os outros cotistas para decidir qual semana será essa. Se você não for organizado, acaba com uma semana em novembro chuvoso quando queria janeiro ensolarado.
Além disso, a lei estabeleceu que a fração mínima de tempo é de sete dias. Isso foi feito para evitar a pulverização excessiva da propriedade, o que tornaria a gestão um caos absoluto. Imagine administrar um condomínio onde cada proprietário é dono de apenas um dia ou algumas horas? Seria juridicamente insustentável. Portanto, ao assinar o contrato, verifique sempre se a sua fração respeita esse mínimo legal e se está claramente descrita na matrícula do imóvel. Sem matrícula individualizada, você não tem propriedade, tem apenas uma promessa.[2]
A Lei 13.777/2018: O divisor de águas jurídico
Eu costumo dizer em sala de aula que a Lei 13.777/2018 veio para civilizar o faroeste. Antes dela, os contratos de multipropriedade eram um emaranhado de cláusulas abusivas baseadas em leis de hotelaria ou em adaptações malfeitas da lei de condomínios tradicionais de 1964. A nova lei inseriu o Capítulo VII-A no Código Civil, dando dignidade e segurança jurídica ao instituto. Agora, o multiproprietário tem direitos reais, o que é o “Santo Graal” no direito das coisas.
Um dos pontos mais importantes dessa legislação é a independência das dívidas. Antes, se o “dono” da semana do Carnaval deixasse de pagar o condomínio ou o IPTU, havia o risco de o imóvel inteiro sofrer restrições, prejudicando você, que pagou tudo em dia e só quer usar sua semana em agosto. A lei blindou os demais proprietários: a dívida de IPTU e de condomínio é propter rem (adere à coisa), mas vinculada especificamente à fração de tempo do inadimplente. A prefeitura ou o condomínio só podem penhorar e levar a leilão a cota do devedor, não o imóvel todo.
Outra vitória legislativa foi a normatização da administração. A lei exige que haja um administrador profissional. Não dá para deixar a gestão de um resort com 500 donos na mão de um síndico amador que mora em outra cidade. A figura do administrador é mandatória e ele tem poderes específicos para manter a ordem, a manutenção e, principalmente, a escala de uso. Sem essa figura legalmente constituída, o sonho da casa de férias viraria rapidamente um cortiço de luxo degradado pelo uso intenso e pela falta de manutenção preventiva.
A diferença fundamental para o Time Sharing tradicional
Aqui reside a maior confusão que vejo no meu escritório. Você chega dizendo “comprei um time sharing”, mas me mostra uma escritura de multipropriedade. Ou vice-versa. Embora o mercado use os termos como sinônimos por marketing, para nós, advogados, são água e vinho. O Time Sharing clássico, ou tempo compartilhado puro, é uma relação de direito obrigacional, não real.[2][3][4] Você assina um contrato de prestação de serviços com uma rede hoteleira que te dá o direito de uso por 10, 20 ou 30 anos.
No Time Sharing puro, você não é dono de nada.[2][3][5] Você é um usuário VIP antecipado. Se a rede hoteleira falir, você entra na fila dos credores quirografários (aqueles que não têm preferência) e provavelmente não verá a cor do seu dinheiro. Na Multipropriedade, se a incorporadora quebrar, a fração do imóvel já é sua. O prédio existe, a terra existe, e seu nome está no cartório. Essa segurança patrimonial é o grande diferencial que justifica, muitas vezes, o preço mais elevado da multipropriedade em relação aos clubes de férias tradicionais.
Pense da seguinte forma: no Time Sharing, você está pagando adiantado por diárias de hotel futuras, congelando o preço da hospedagem (em tese). Na Multipropriedade, você está investindo em patrimônio imobiliário.[1][2][3][6][7][8][9][10][11][12] Claro, patrimônio traz custos e impostos, enquanto o serviço traz apenas taxas de uso. A escolha depende se você quer acumular bens ou apenas garantir experiências. Mas nunca, jamais, ache que ter um contrato de clube de férias é o mesmo que ter uma escritura pública. O peso jurídico e a proteção estatal são completamente diferentes.
Como Funciona na Prática: O Dia a Dia do Cotista
Agora que superamos a teoria pesada, vamos para a vida real. Como é ser dono de 1/26 avos de um apartamento em Gramado ou em Caldas Novas? A primeira coisa que você percebe é que a posse é exercida de forma alternada.[2] Você é dono o ano todo, mas só pode entrar na sua casa quando o calendário permite. Isso exige um planejamento familiar rigoroso. Se você é daquelas pessoas que decide viajar na sexta-feira à noite por impulso, esse produto definitivamente não é para você.
A convivência, mesmo que à distância, com os outros proprietários é mediada por regras estritas de uso.[13] Você não pode, por exemplo, pintar a parede da sala de roxo ou trocar o sofá porque achou feio. A padronização é a alma do negócio. O imóvel precisa estar idêntico para o João que entra em janeiro e para a Maria que entra em fevereiro. Qualquer dano causado durante sua estadia será cobrado rigorosamente no check-out, tal qual um hotel. A sensação é de estar hospedado na sua própria casa, mas sem a liberdade de personalizá-la com seus porta-retratos.
A gestão do calendário e o sistema de rodízio
O coração da multipropriedade é o sistema de reservas. Se você comprou semanas flutuantes, prepare-se para entender algoritmos de prioridade. Geralmente, as convenções de condomínio estabelecem um sistema de rodízio justo. Se este ano você conseguiu pegar o Natal, é quase certo que no ano que vem você estará no fim da fila para essa data, sendo empurrado para datas menos nobres. Isso é necessário para garantir a equidade entre todos os donos, afinal, todos pagaram preços similares pelas cotas de “Alta Temporada”.
Existe também uma antecedência mínima e máxima para marcar suas datas. Perdeu o prazo? Sinto muito, sua semana ficou vaga e pode ser colocada no pool de locação (falaremos disso já já) ou simplesmente ficar vazia, mas você continuará pagando o condomínio. A gestão desse calendário é feita geralmente por um portal online ou um aplicativo da administradora. A tecnologia facilitou isso, mas também despersonalizou. Não adianta ligar para o síndico chorando que sua filha só tem férias em julho. Se o sistema diz que está lotado, está lotado.
Para quem compra semanas fixas, o problema é outro: a monotonia. Você terá aquela semana específica para sempre. Se enjoar do destino, terá que alugar ou tentar trocar. Mas a vantagem é a previsibilidade. Você sabe que todo ano, na semana 12, seu apartamento está lá. Isso funciona muito bem para empresas que compram cotas para bonificar funcionários ou para famílias com tradições muito rígidas de datas. Mas lembre-se: a vida muda, os filhos crescem, e aquela semana fixa que parecia perfeita hoje pode virar um estorvo na agenda daqui a cinco anos.
Quem paga a conta? Taxas de condomínio e manutenção[2][4][13]
Aqui é onde o bolso dói e onde a maioria dos meus clientes se arrepende se não fez as contas direito. Você paga condomínio todo mês, mesmo usando o imóvel apenas duas semanas no ano. “Mas doutor, isso é injusto!” Não, não é. O imóvel precisa ser limpo, vigiado, a piscina tratada e a energia paga o ano todo para estar impecável quando você chegar. O custo de manter um imóvel de luxo é alto e é rateado entre todos os cotistas.
Além do condomínio ordinário, prepare-se para as chamadas extras e fundo de reserva, muito comuns para a reposição de enxoval e mobília. Diferente da sua casa, onde o sofá dura 10 anos, num resort o uso é intenso. Pratos quebram, lençóis rasgam, o ar-condicionado pifa com mais frequência. A taxa de manutenção desses empreendimentos costuma ser salgada porque o padrão de entrega é hoteleiro. Você não está pagando apenas para cortarem a grama; está pagando camareiras, recepcionistas, gerentes e manutenção predial pesada.
E não se esqueça do IPTU. Como você tem uma matrícula individualizada, o carnê do imposto chega no seu nome, proporcional à sua fração. Se o imóvel total vale 2 milhões e você tem 1/20 dele, você paga imposto sobre 100 mil reais. Parece pouco, mas somado às taxas mensais de condomínio (que muitas vezes beiram 500 ou 800 reais por cota), o custo fixo anual pode comer uma boa fatia do seu orçamento de lazer, quer você viaje ou não. A inadimplência é um problema sério nesses empreendimentos e a cobrança judicial é implacável.
O “Intercâmbio de Férias”: Funciona mesmo?
A grande “cenoura” que os vendedores balançam na sua frente é a possibilidade de intercâmbio.[9][14] Eles dizem: “Se você cansar de Caldas Novas, pode trocar suas semanas por Orlando, Cancún ou Paris através da RCI ou Interval”. Essas são as grandes intercambiadoras mundiais. A promessa é linda: seu imóvel no Brasil vira uma moeda de troca global. Mas, como advogado, preciso te alertar sobre as letras miúdas desse contrato de adesão.
O intercâmbio não é automático nem gratuito.[2][4][8][13][14] Primeiro, você precisa pagar uma taxa anual para ser associado a essas redes. Segundo, quando você quer trocar sua semana, você paga uma “taxa de intercâmbio”. Terceiro, e mais importante: o poder de troca da sua semana depende da “pontuação” do seu imóvel. Uma semana de baixa temporada no interior do Brasil não vale o mesmo que uma semana de Natal na Disney. Você pode precisar acumular dois ou três anos de pontos para conseguir uma viagem internacional premium.
Além disso, a disponibilidade nos destinos mais cobiçados é disputadíssima. Não ache que vai conseguir trocar sua cota por um hotel em Nova York na virada do ano com facilidade. Exige planejamento de meses, às vezes mais de um ano de antecedência. Funciona? Sim, funciona para quem é organizado e flexível. Para quem deixa para a última hora, o intercâmbio é uma frustração cara. Você acaba pagando a taxa de associação e nunca usando, ou usando em destinos que não eram sua primeira opção apenas para não perder os pontos.
O Duelo Jurídico: Propriedade Real vs. Direito Obrigacional[1][10]
Vamos aprofundar um pouco mais na teoria, porque é aqui que eu garanto que você não será passado para trás. A distinção entre Direito Real (sobre a coisa) e Direito Obrigacional (entre pessoas) é a espinha dorsal do Direito Civil. Quando você entende isso, você entende o poder da sua assinatura. Na multipropriedade, criamos um vínculo direto entre você e o imóvel. No time sharing puro ou nos clubes de férias, o vínculo é entre você e uma empresa.
Se a relação é obrigacional (clube de férias), o descumprimento se resolve em perdas e danos. Se a empresa não te entregar o quarto, você processa pedindo indenização. Se a relação é real (multipropriedade), você tem o direito de sequela.[1][10] Isso significa que você pode perseguir a coisa onde quer que ela esteja ou com quem quer que ela esteja.[8][14] É um direito absoluto, erga omnes (contra todos). Isso te dá uma alavancagem jurídica muito maior em caso de litígio.
A segurança blindada do Registro de Imóveis (RGI)
O Cartório de Registro de Imóveis é a instituição mais segura do sistema jurídico brasileiro no que tange a patrimônio. O princípio da publicidade registral garante que o que está na matrícula é a verdade absoluta até prova em contrário. Ter seu nome lá significa que o Estado reconhece seu domínio. Isso protege sua cota de vendas duplas, fraudes de incorporadoras que vendem a mesma unidade para dez pessoas (comum em contratos de gaveta) e garante a rastreabilidade do bem.
Essa segurança, contudo, tem um preço: os emolumentos cartorários e o ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis). Na compra da multipropriedade, você paga imposto para a prefeitura e taxas para o cartório para registrar a escritura. No time sharing de serviço, não há esses custos iniciais pesados.[4][6] Você deve pesar se a segurança da propriedade compensa o custo de entrada (“entry cost”). Para bens de alto valor e longo prazo, minha recomendação jurídica é sempre optar pela segurança do registro.
A natureza de simples contrato no Time Sharing puro
Por outro lado, não vamos demonizar o contrato obrigacional.[2] O modelo de Time Sharing puro, baseado em prestação de serviços, tem a vantagem da flexibilidade e da menor burocracia.[6] Não há escritura para fazer, não há ITBI para pagar, e o cancelamento, embora possa ter multas, é menos traumático do que tentar vender um imóvel escriturado. É como comparar um casamento (multipropriedade) com um namoro sério (time sharing).
O problema jurídico aqui é a vulnerabilidade em caso de insolvência da operadora. Vimos casos históricos no Brasil e no mundo de operadoras de turismo e hotéis que venderam planos de férias de 30 anos e fecharam as portas no terceiro ano. Os consumidores ficaram com um pedaço de papel na mão que não valia nada, pois não havia um bem físico atrelado àquele contrato para garantir a dívida. Se você optar por esse modelo, investigue a saúde financeira da empresa como se fosse um auditor, pois seu risco é todo nela.
O que fica para os herdeiros? Sucessão e partilha
Ninguém gosta de pensar na morte, mas como seu advogado, eu preciso. A multipropriedade, por ser imóvel, entra no inventário.[6][10][13] Se você falecer, sua cota de duas semanas em Porto Seguro passa para seus filhos. Isso é ótimo se o bem for valorizado e desejado, mas pode ser um presente de grego se for um imóvel com condomínio caro e difícil revenda. Os herdeiros terão que pagar o ITCMD (imposto sobre herança) sobre o valor dessa cota e continuar pagando o condomínio até conseguirem vender.
Já no Time Sharing puramente obrigacional, muitas vezes o contrato se extingue com a morte do titular ou tem regras de transferência muito específicas e restritas. Em alguns casos, é um direito personalíssimo.[2][12] Na multipropriedade, é patrimônio herdável.[12] Isso permite um planejamento sucessório interessante. Você pode, por exemplo, doar a cota em vida para os filhos com reserva de usufruto, garantindo que você usa enquanto for vivo, mas a propriedade já está no nome deles, evitando o inventário futuro.
Blindagem do Consumidor: Não Caia em Armadilhas Emocionais
Você precisa saber que a venda de multipropriedade é agressiva.[15] Ela é desenhada por psicólogos de consumo para quebrar suas defesas racionais. O ambiente é controlado: música alta, crianças se divertindo, bebidas alcoólicas liberadas e promessas de status. Juridicamente, chamamos isso de venda emocional ou venda de alto impacto. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) está do seu lado, mas você precisa saber como usá-lo.
O maior erro é assinar o contrato na sala de vendas sem ler. Eles vão dizer que é um contrato padrão, que “todo mundo assina”. Não caia nessa. Contratos de multipropriedade são longos, cheios de cláusulas de fidelidade, multas rescisórias abusivas e regras de uso complexas. Se você não puder levar o contrato para seu advogado ler antes, não assine. A pressão de “a oferta só vale para agora” é mentira. Se o produto é bom hoje, será bom amanhã.
A tática do “vinho de cortesia” e a pressão psicológica[1]
A estratégia é clássica: captam você na rua ou na praia com a promessa de um brinde (um jantar, ingressos para o parque, um voucher). Em troca, pedem “apenas 60 minutos” da sua atenção para apresentar o empreendimento. Esses 60 minutos viram 4 horas de massacre mental. Vários vendedores se revezam, o gerente vem oferecer um desconto “que o patrão não pode saber”, e quando você vê, está exausto e assina só para ir embora.
Isso pode configurar vício de consentimento. Se a pressão for tal que retire seu discernimento, o negócio pode ser anulável. Mas provar isso judicialmente é difícil. A melhor defesa é o ataque: saiba que você está entrando em um teatro de vendas. Mantenha a frieza, beba água (evite o álcool oferecido) e não tenha medo de dizer um sonoro “NÃO”. Lembre-se: oportunidades imobiliárias reais não precisam de circo para serem vendidas.[6]
O sagrado Artigo 49 do CDC: Direito de Arrependimento
Se você cedeu e assinou, calma. O Artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor é seu melhor amigo. Ele garante o Direito de Arrependimento no prazo de 7 dias, contados da assinatura ou do ato de recebimento do serviço, sempre que a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial. “Mas doutor, eu assinei dentro do stand de vendas do resort!”. A jurisprudência (decisões dos tribunais) tem entendido majoritariamente que essa venda de impacto, onde você foi abordado na praia e levado ao stand, equipara-se à venda fora do estabelecimento, pois você não saiu de casa com a intenção de comprar um imóvel.
Nesse prazo de 7 dias, você pode cancelar tudo, sem multa, sem justificativa, e receber cada centavo de volta, inclusive o sinal. É um direito potestativo – você não precisa explicar por que mudou de ideia. Envie uma notificação formal (carta registrada ou e-mail com confirmação de leitura) imediatamente. Não aceite conversas por telefone onde eles tentam te convencer a ficar. Formalize o cancelamento dentro do prazo.
Rescisão contratual: quando o divórcio do imóvel é necessário
Passaram-se os 7 dias, passaram-se 2 anos, e você viu que entrou numa furada. O condomínio subiu, você não consegue reservar as datas e quer sair. A revenda é difícil, então a saída é a rescisão judicial do contrato (o distrato). A nova Lei do Distrato (Lei 13.786/2018) trouxe regras duras. Se a culpa da rescisão for sua (você não quer mais pagar), a incorporadora pode reter até 50% do que você pagou se o empreendimento estiver no regime de patrimônio de afetação.
Contudo, se houver atraso na entrega da obra superior a 180 dias, a culpa é da construtora. Nesse caso, a rescisão é por culpa exclusiva deles, e você deve receber 100% do que pagou, corrigido e com multa a seu favor, em parcela única. Como advogado, minha briga é sempre tentar provar alguma falha da empresa para fugir da retenção alta. Mas esteja ciente: sair de um contrato de multipropriedade depois do prazo de arrependimento costuma gerar prejuízo financeiro. É um casamento fácil de entrar e difícil de sair.
Vantagens e Riscos: O Advogado do Diabo Analisa
Para sermos justos, não é tudo ruim. Para o perfil certo, a multipropriedade é fantástica.[1] Se você ama um destino, vai todo ano, gosta de padrão hoteleiro e tem a disciplina financeira para pagar os custos fixos, é muito mais barato do que comprar uma casa inteira sozinho. Você divide o custo de aquisição e de manutenção com outras 20 pessoas. É a economia compartilhada aplicada ao mercado de luxo.
O problema reside na expectativa versus realidade. O risco de desvalorização é real. O mercado secundário (revenda de cotas usadas) ainda é imaturo no Brasil. Tentar vender sua cota usada é difícil porque você compete com a própria incorporadora que ainda tem unidades novas para vender e oferece financiamento em 60 meses. Se você precisar de liquidez rápida, vai ter que vender sua cota a preço de banana.
O argumento econômico: luxo acessível[13]
A matemática é sedutora. Uma casa de 2 milhões de reais, dividida por 26 cotas, custa cerca de 77 mil reais cada cota. Por 77 mil (muitas vezes parcelados), você tem acesso vitalício a um imóvel de 2 milhões. Você usufrui do mesmo luxo, da mesma piscina e da mesma vista que o dono integral teria, pagando uma fração do preço. Para a classe média alta, é a porta de entrada para resorts de alto padrão que seriam inacessíveis de outra forma.
A inflexibilidade de datas: o maior gargalo
Eu reforço: a rigidez é o calcanhar de Aquiles. Férias escolares, doenças, imprevistos no trabalho… a vida não segue uma tabela de Excel. Se você não puder ir na sua semana, você pode tentar alugar, mas nem sempre consegue. E se você não for e não alugar, o custo daquela semana foi perdido, somado ao condomínio que você pagou. A falta de espontaneidade pode transformar o lazer em obrigação. “Tenho que ir para Caldas Novas porque já paguei”, e não “Quero ir porque estou com vontade”.
A dificuldade de revenda no mercado secundário
Este é o ponto que os vendedores omitem. Eles dizem que é um “investimento”.[15] Imóvel é investimento quando tem liquidez e valorização.[6] Cota de multipropriedade tem baixa liquidez. Se você cansar do imóvel daqui a 5 anos, não espere vender com lucro fácil. A maioria dos meus clientes que consegue vender, vende pelo mesmo preço que comprou ou até com deságio, apenas para se livrar da taxa de condomínio mensal. Encare como um bem de uso, não como uma aplicação financeira.
Comparativo de Produtos: Onde Colocar Seu Dinheiro?
Para facilitar sua visualização, preparei este quadro comparativo entre a Multipropriedade e seus “concorrentes” diretos.
| Característica | Multipropriedade (Lei 13.777/18) | Time Sharing (Clube de Férias) | Casa de Veraneio Própria (Tradicional) |
| Natureza Jurídica | Direito Real (Propriedade Imobiliária) | Direito Obrigacional (Serviço) | Direito Real (Propriedade Plena) |
| Documentação | Escritura Pública e Registro (RGI) | Contrato Particular de Adesão | Escritura Pública e Registro (RGI) |
| Tempo de Uso | Fracionado (ex: 2 ou 4 semanas/ano) | Pontos ou Semanas (por 10-30 anos) | Livre (365 dias/ano) |
| Custos Fixos | Condomínio e IPTU (proporcional) | Taxa de Manutenção Anual | Condomínio, IPTU, Jardineiro, Caseiro (Integral) |
| Investimento Inicial | Médio (compra da fração) | Baixo/Médio (compra do pacote) | Alto (compra do imóvel integral) |
| Hereditariedade | Sim (entra no inventário) | Geralmente não (depende do contrato) | Sim (entra no inventário) |
| Flexibilidade | Baixa (regras de rodízio/fixas) | Média (sujeito a disponibilidade) | Total (você decide tudo) |
| Revenda | Difícil (mercado em desenvolvimento) | Muito Difícil (quase sem valor de revenda) | Média/Alta (depende do mercado imobiliário) |
Meu caro, espero que essa “consulta” tenha clareado suas ideias. A multipropriedade não é um monstro, mas é um animal que precisa ser domado com conhecimento. Se for fechar negócio, faça-o pela razão, não pela emoção do espumante na praia. Leia o contrato, faça as contas e, na dúvida, consulte sempre seu advogado de confiança antes de assinar. Seu patrimônio e sua paz de espírito agradecem.
