ICMS na Conta de Luz: O Jogo Virou com o Tema 986 do STJ?
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Se você acompanha as notícias tributárias ou pelo menos dá uma olhada detalhada nas despesas da sua empresa, já deve ter ouvido falar que seria possível recuperar uma “bolada” do ICMS cobrado na conta de energia elétrica. Durante anos, advogados tributaristas (eu incluso) bateram na porta de clientes afirmando que a cobrança sobre as tarifas de transmissão e distribuição (TUST e TUSD) era indevida. Parecia uma causa ganha, com jurisprudência favorável e argumentos sólidos de que essas tarifas não representavam a mercadoria “energia”, mas apenas o “frete” dela.

No entanto, o cenário jurídico é dinâmico e, muitas vezes, traiçoeiro para quem não está atento aos detalhes. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) recentemente jogou um balde de água fria nessa tese com o julgamento do Tema 986. O que antes era uma oportunidade clara de recuperação de crédito, agora se tornou um campo minado que exige cautela extrema. Não estou aqui para vender ilusões, mas para ter uma conversa franca sobre o que aconteceu, como isso afeta o seu bolso hoje e se ainda existe alguma luz no fim do túnel.

Você precisa entender que a lógica mudou. A discussão deixou de ser apenas sobre “quem tem razão” na teoria e passou a ser sobre “quem tem a liminar certa na data certa”. Vamos desenrolar esse carretel jurídico sem o “juridiquês” desnecessário, mas com a precisão técnica que o seu financeiro exige para não cometer erros caros.

Entendendo o “Frete” da Energia: O Que São TUST e TUSD

Para começarmos na mesma página, vamos desmistificar essas siglas que aparecem nas faturas de energia, especialmente para grandes consumidores e empresas. A energia elétrica não chega até a sua tomada por mágica; ela precisa ser gerada, transmitida por longas distâncias (aquelas grandes torres que vemos nas estradas) e, finalmente, distribuída pelos postes da cidade até o seu medidor.

A TUST (Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão) e a TUSD (Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição) são, basicamente, o pagamento pelo uso dessa infraestrutura.[1] O argumento jurídico que sustentamos por anos era simples: o ICMS é um imposto sobre a circulação de mercadorias. Se a TUST e a TUSD remuneram apenas o “fio” (o serviço de transporte) e não a energia em si (a mercadoria), o imposto não deveria incidir sobre elas. Seria como cobrar ICMS sobre o frete dos Correios quando você compra um livro, mas numa escala tributária muito mais complexa e cara.

Essa distinção técnica foi o alicerce de milhares de ações judiciais no Brasil. O raciocínio era de que o “fato gerador” do ICMS só ocorria no consumo efetivo da energia. Tudo o que vinha antes — o transporte, a disponibilidade da rede — seria meio, não fim. E o Estado, na sua voracidade arrecadatória, estaria tributando indevidamente essas etapas preparatórias, inflando a base de cálculo e tirando dinheiro do caixa das empresas.

A Virada de Mesa: O Julgamento do Tema 986 pelo STJ[2][3][4][5][6][7][8]

Em março de 2024, a Primeira Seção do STJ finalizou o julgamento do Tema 986 dos Recursos Repetitivos, e a decisão foi um golpe duro para os contribuintes. Por unanimidade, os ministros fixaram a tese de que a TUST e a TUSD integram, sim, a base de cálculo do ICMS.[2][3][4] O Tribunal entendeu que não é possível separar o transporte da energia do consumo da energia; para o consumidor final, é tudo uma coisa só. Você não compra “energia” sem comprar o “fio” para ela chegar até você.

A mudança de entendimento baseou-se na ideia de que o sistema elétrico é uno e interdependente. Para o STJ, a disponibilidade do sistema de transmissão e distribuição é essencial para que a mercadoria (energia) seja consumida. Portanto, o custo desse sistema compõe o preço final da operação e deve ser tributado. Foi uma vitória gigantesca para os Estados, que temiam um rombo bilionário em seus orçamentos caso a tese dos contribuintes prevalecesse.

Com essa decisão proferida em sede de recurso repetitivo, ela tem efeito vinculante para as instâncias inferiores. Isso significa que juízes de primeira instância e Tribunais de Justiça estaduais não podem mais decidir de forma contrária.[9] A tese vencedora é a do Fisco: pagar ICMS sobre a conta “cheia” (Energia + TUST + TUSD) é, agora, a regra validada pelo Judiciário. Se você tinha uma expectativa de “causa ganha”, é hora de recalcular a rota.

A Modulação de Efeitos: Quem se Salvou no Bote Salva-Vidas?

Como advogado experiente, sei que no Direito Tributário brasileiro até o passado é incerto. Mas, para evitar uma quebradeira geral de quem confiou na jurisprudência antiga, o STJ aplicou a chamada “modulação de efeitos”. Isso é um mecanismo para dizer: “a regra mudou, mas vamos proteger quem agiu de boa-fé até determinado momento”. O tribunal fixou um marco temporal crucial: 27 de março de 2017.[3][6]

A regra ficou assim: quem obteve uma liminar (tutela antecipada) favorável para não pagar o ICMS sobre TUST/TUSD até essa data de 27/03/2017, e essa liminar ainda estava valendo, está “salvo” até a data da publicação do acórdão do Tema 986 (maio de 2024).[2][3][4][6] Durante esse período, esses contribuintes sortudos não precisam pagar o imposto retroativo. Foi um reconhecimento de que, até 2017, o próprio STJ dava sinais de que o contribuinte tinha razão, e seria injusto cobrar a conta de quem confiou no tribunal.

Por outro lado, a notícia é péssima para a grande maioria. Se você entrou com a ação depois de março de 2017, ou se entrou antes mas nunca conseguiu uma liminar, ou se teve a liminar cassada, você terá que pagar tudo. O STJ determinou que, para esses casos, a decisão tem efeito retroativo. Ou seja, os Estados podem cobrar a diferença do ICMS não pago nos últimos 5 anos, com juros e correção. É um cenário de gestão de passivo tributário, e não mais de recuperação de ativos.

O Conflito com a Lei Complementar 194/2022[1][3][6][7]

Você deve estar se perguntando: “Mas doutor, não saiu uma lei em 2022 dizendo que não podia cobrar?”. Excelente memória. De fato, o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar 194/2022, que alterou a Lei Kandir para dizer explicitamente que TUST e TUSD não compõem a base de cálculo do ICMS. Foi uma tentativa legislativa de resolver o problema “na canetada”, passando por cima do Judiciário para beneficiar o consumidor e reduzir a inflação na época.

O problema é que os Governadores não aceitaram perder essa receita calados. Eles ajuizaram a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7195 no Supremo Tribunal Federal (STF).[3][7] O Ministro Luiz Fux concedeu uma liminar suspendendo os efeitos desse artigo da LC 194/2022. O argumento é que a União não poderia legislar sobre a base de cálculo de um imposto estadual dessa forma, ferindo o pacto federativo.

Então, hoje vivemos um limbo jurídico curioso. Temos uma lei federal dizendo “não cobre”, mas essa lei está suspensa pelo STF. E temos uma decisão do STJ dizendo “pode cobrar”.[10] A esperança derradeira dos contribuintes reside agora no julgamento final dessa ADI 7195 pelo plenário do STF. Se o Supremo decidir que a LC 194 é constitucional, ela pode “atropelar” a decisão do STJ. Mas, sendo realista com você, a tendência atual do STF tem sido proteger os cofres públicos dos Estados.

Cenários Práticos e Riscos Imediatos

Vamos analisar a sua situação prática. Se a sua empresa possui uma ação em andamento sem liminar, ou se nunca entrou com ação, o risco agora é de fiscalização. Com a decisão do STJ pacificada, as Secretarias de Fazenda estaduais estão se armando para cobrar quem deixou de pagar. Em estados como São Paulo, já existem programas de “autorregularização”, onde o Fisco envia uma cartinha amigável dizendo: “Vimos que você não pagou o ICMS sobre a TUST. Pague agora espontaneamente e livre-se das multas punitivas”.

Ignorar esses avisos é perigoso. A multa em uma autuação fiscal pode chegar a 100% ou mais do valor do imposto devido. Se você estava depositando o valor em juízo, o dinheiro será convertido em renda para o Estado. Se você estava compensando valores por conta própria baseada em liminar cassada, prepare o caixa. A estratégia agora mudou de ataque para defesa de patrimônio.

Por outro lado, se você é um dos poucos que tem a liminar anterior a 2017, parabéns, sua blindagem funcionou por um bom tempo. Mas atenção: a partir da publicação do acórdão em 2024, a “festa” acabou para todos. Daqui para frente, a tributação é devida.[11] A modulação apenas perdoou o passado, não isentou o futuro. Sua conta de luz virá cheia, e o planejamento orçamentário da sua empresa precisa refletir esse custo adicional imediatamente.

O Que Fazer Agora? Estratégias de Sobrevivência

A primeira medida é realizar uma auditoria interna nos processos da sua empresa. Peça para o seu jurídico levantar a data exata de ajuizamento de qualquer ação sobre o tema e a data de concessão de eventuais liminares. Sem esses dados, você está voando às cegas. Se descobrir que está no grupo de risco (ação pós-2017 ou sem liminar), a adesão a programas de parcelamento ou anistia (Refis) estaduais pode ser a saída mais inteligente para estancar a sangria dos juros.

Não caia no conto do “vamos entrar com uma nova tese”. Advogados aventureiros podem sugerir novas manobras para tentar driblar o Tema 986, mas o Judiciário está fechando o cerco contra a litigância predatória. O STJ foi claro e unânime.[2] Insistir no erro agora pode gerar condenação em honorários de sucumbência, fazendo você pagar os advogados do Estado. O custo do litígio aumentou drasticamente.

Mantenha o radar ligado na ADI 7195 no STF. Embora as chances sejam reduzidas, uma virada lá (declarando a constitucionalidade da LC 194) é a única “bala de prata” que resta. Até lá, a postura conservadora é a mais recomendada. Pague o imposto, mas continue acompanhando. Se o STF decidir a favor no futuro, entraremos com um pedido de repetição de indébito (devolução) do que for pago a partir de agora, mas sempre com os pés no chão.

Quadro Comparativo: Teses de Recuperação Tributária

Para você visualizar onde a tese da TUST/TUSD se encaixa hoje no mercado jurídico, preparei este comparativo com outras duas teses famosas. Veja que nem todas as “oportunidades” têm o mesmo nível de maturidade ou risco.

CaracterísticaTese da TUST/TUSD (Energia)Tese do Século (ICMS na base do PIS/COFINS)Tese do Limite de 20 Salários (Contribuições a Terceiros)
Status AtualDesfavorável (Tema 986 STJ favorável ao Fisco).Favorável (Julgada pelo STF com repercussão geral).[8]Desfavorável (STJ decidiu contra o contribuinte).
RiscoAltíssimo. Ações novas tendem a ser improcedentes liminarmente.Baixo. Direito já reconhecido, fase de execução/cálculos.Alto. Jurisprudência virou a favor da União recentemente.
Efeito no CaixaGera passivo (risco de ter que pagar atrasados).Gera ativo (dinheiro a recuperar ou compensar).[9]Gera passivo para quem deixou de pagar via liminar.
RecomendaçãoAuditar processos antigos e aderir a regularização se necessário.Aproveitar para compensar créditos o quanto antes.Reavaliar provisões e preparar para pagar se houver liminar caindo.

A mensagem final é clara: o Direito Tributário é um jogo de xadrez, não de loteria. A tese da TUST/TUSD foi um bom combate, mas o resultado atual exige pragmatismo. Proteja seu caixa, evite multas desnecessárias e converse com seu advogado sobre como encerrar essa disputa com o menor dano possível.

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