Distinguishing (Distinção): A Arte de Mostrar que Seu Caso é Diferente do Precedente Vinculante
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Imagine a cena: você passou semanas preparando uma petição inicial impecável ou um recurso de apelação robusto. Você conhece cada detalhe dos fatos, conversou horas com seu cliente e tem certeza de que a justiça está do seu lado. De repente, vem o balde de água fria. O juiz aplica uma “tese fixada” em um Recurso Repetitivo ou uma Súmula Vinculante e encerra a discussão. Ele diz que o seu caso é idêntico a um precedente anterior e, por isso, deve ter o mesmo destino cruel., ao escolher um Curso Advocacia Estratégica nos Tribunais de 2º Grau e Superiores

Mas você sabe que não é idêntico. Você sabe que existe um detalhe, uma nuance fática, uma peculiaridade que muda tudo. O problema é: como convencer o juiz disso? Como dizer “Excelência, o senhor está certo sobre a regra, mas este caso não se encaixa nela”?

É aqui que entra o Distinguishing (ou, em bom português, a Distinção).

Não se trata apenas de uma técnica processual fria; é a arte de salvar o direito do seu cliente da vala comum das decisões massificadas. No Brasil pós-CPC de 2015, saber manejar a distinção não é mais um luxo acadêmico para parecer culto em sustentação oral. É uma ferramenta de sobrevivência na advocacia contenciosa. Se você não souber apontar onde o trilho se divide, seu processo será atropelado pelo trem dos precedentes vinculantes.

Neste artigo, vamos mergulhar fundo nessa técnica. Vamos sair da teoria rasa e ir para a trincheira, discutindo como construir, apresentar e vencer usando o argumento da distinção.

O Que é Distinguishing (e Por Que Você Precisa Dominá-lo Agora)

O Conceito Simples: Fatos Diferentes, Soluções Diferentes

No fundo, o direito busca tratar casos iguais de forma igual.[4] Isso é isonomia.[5] Mas o reverso também é verdadeiro e frequentemente esquecido: devemos tratar casos desiguais de forma desigual. O distinguishing é a ferramenta processual que materializa essa segunda parte da equação.

Ele ocorre quando você demonstra ao julgador que o caso concreto sob análise possui particularidades fáticas ou jurídicas que o tornam diferente do caso paradigma (aquele que gerou o precedente).[3][6] Não é dizer que o precedente está errado. É dizer que ele simplesmente não serve para a “roupa” que seu cliente está vestindo. O precedente é uma luva de tamanho único, e seu caso é uma mão com seis dedos. A luva não cabe.

Essa técnica impede a aplicação mecânica e cega da jurisprudência. Vivemos a era da “jurisprudência defensiva” e das decisões padronizadas, onde é mais fácil colar uma ementa do STJ do que analisar os autos. O distinguishing é o freio de mão que você puxa para obrigar o tribunal a olhar para os fatos específicos da sua lide, e não apenas para a tese abstrata.

A Importância Vital no Novo CPC (Art.[4][7] 489 e 927)[2][3]

O Código de Processo Civil de 2015 não apenas trouxe o sistema de precedentes para o centro do palco; ele deu ao advogado a munição para exigir a distinção. Antes, alegar distinção era quase um favor que pedíamos. Hoje, é um dever do juiz analisar.

O artigo 489, § 1º, inciso VI, do CPC é o seu melhor amigo aqui. Ele diz expressamente que não se considera fundamentada a decisão que deixa de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.[2]

Leia isso de novo: “sem demonstrar a existência de distinção”. O legislador impôs ao magistrado o ônus argumentativo. Se você, advogado, levantar a mão e disser “Excelência, há uma distinção aqui”, o juiz não pode simplesmente ignorar. Ele precisa enfrentar seu argumento. Se ele não o fizer, a decisão é nula por falta de fundamentação. Isso transformou o distinguishing de uma tese acadêmica em uma nulidade processual arguível.

Precedente Vinculante x Persuasivo: Onde o Distinguishing Entra

Você pode estar pensando: “Mas eu preciso fazer distinção de qualquer julgado que a outra parte juntar?” Não necessariamente. A técnica é crucial quando estamos lidando com precedentes vinculantes — aqueles listados no artigo 927 do CPC, como Súmulas Vinculantes, decisões em IRDR (Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas) e Recursos Especiais ou Extraordinários Repetitivos.

Contra esses “gigantes”, a argumentação comum não funciona. Você não pode simplesmente dizer “a decisão é injusta”. O juiz está amarrado. A única chave que abre essa algema é o distinguishing. Você precisa mostrar que a amarra não se aplica ao seu cliente.

Já nos precedentes persuasivos (aquela jurisprudência esparsa de tribunais estaduais ou turmas isoladas), a distinção também é útil, mas o ônus é menor. Lá, você pode argumentar que o entendimento está superado ou é minoritário. Aqui, no terreno vinculante, a distinção é muitas vezes sua única saída estratégica para evitar uma improcedência liminar ou um julgamento antecipado desfavorável.

A Diferença Crucial: Distinguishing, Overruling e Overriding[1][3][6]

Overruling: Quando o Precedente “Morre” (Superação)[2]

Muitos advogados confundem tentar derrubar um precedente com tentar se desviar dele. Derrubar o precedente é o que chamamos de Overruling (superação).[2][3][6] Aqui, o argumento é frontal: “Excelência, este entendimento do STJ está ultrapassado, a lei mudou, a sociedade mudou, e essa tese não se sustenta mais para ninguém”.

Overruling é ambicioso e difícil. Ele ataca a validade da norma criada pelo tribunal. Você está pedindo que a Corte reconheça que errou ou que o tempo corroeu aquela certeza jurídica. É uma manobra pesada, geralmente reservada para os Tribunais Superiores, pois exige uma carga argumentativa política e social muito forte para justificar a quebra da estabilidade jurídica.

No Overruling, o precedente morre (ou é revogado) e nasce um novo entendimento que valerá para todos os casos futuros.[1] É uma mudança de rota completa no GPS do judiciário.[1]

Distinguishing: O Precedente Vive, Mas Não Aqui (Afastamento)

Já o Distinguishing é mais sutil e, frequentemente, mais eficaz para o advogado prático. Você não diz que o Tribunal errou. Você diz: “O Tribunal foi sábio ao decidir aquilo para aquele caso, mas o meu caso tem um ‘DNA’ diferente”. Você preserva a autoridade da Corte, o que é psicologicamente mais aceitável para o julgador.

No Distinguishing, o precedente continua vivo, saudável e vinculante para os outros.[6] Ele só não se aplica a você. É uma exceção pontual baseada em fatos. O advogado astuto percebe que é muito mais fácil convencer um juiz de que “este caso é uma exceção” do que convencê-lo de que “o STJ está errado há 10 anos”.

Essa técnica exige uma lupa sobre os autos, não sobre a doutrina. Enquanto o overruling pede filosofia e sociologia jurídica, o distinguishing pede prova, fato e comparação analítica.

Quadro Comparativo: Entendendo as Ferramentas

Para visualizar melhor onde cada peça se encaixa no tabuleiro do processo civil, preparei um comparativo entre o Distinguishing e seus “irmãos” do sistema de precedentes: o Overruling e o Overriding.

CaracterísticaDistinguishing (Distinção)Overruling (Superação)Overriding (Superação Parcial/Sutil)
Objetivo PrincipalAfastar a aplicação do precedente no caso concreto.Revogar e substituir o precedente por um novo entendimento.Limitar o alcance do precedente ou superá-lo parcialmente por nova norma.
Foco do ArgumentoFatos e peculiaridades do caso atual vs. caso paradigma.Validade, atualidade e justiça da tese jurídica em si.Mudança legislativa ou constitucional superveniente que esvazia o precedente.[6]
Resultado PráticoO precedente continua válido, mas não se aplica ao seu cliente.O precedente deixa de existir e perde a validade para todos.[1]O precedente perde força ou tem seu escopo reduzido drasticamente.
Dificuldade TípicaMédia. Exige análise fática detalhada.[7][8]Alta. Exige mudança de postura da Corte.Média/Alta. Exige demonstração de incompatibilidade sistêmica.
Exemplo Prático“A Súmula X fala de juros em bancos, mas meu cliente é uma cooperativa com lei própria.”“A tese Y sobre prisão civil não faz mais sentido com a nova Constituição.”“A Lei Z mudou a regra do jogo, então o Precedente A não pode ser aplicado como antes.”

A Alma do Negócio: Identificando a Ratio Decidendi[1][3][8][9]

O Que é a Ratio Decidendi (Razão de Decidir)

Você não consegue distinguir o seu caso de um precedente se não souber o que, exatamente, cria a vinculação daquele precedente.[2][3][8] E aqui reside o segredo: a ementa do acórdão não é o precedente. O dispositivo (a conclusão “julgo procedente”) também não é. O que vincula é a Ratio Decidendi (ou Holding).

Ratio Decidendi é o fundamento determinante. É a regra jurídica que o tribunal extraiu dos fatos para chegar àquela conclusão. É o “porquê” essencial. Se você retirar a Ratio do acórdão, a decisão não para em pé.[1][3]

Muitos advogados erram ao tentar fazer distinção comparando apenas o resultado final. “Ah, naquele caso o banco perdeu, aqui o banco deve perder também”. Isso é torcida, não direito. Para fazer o distinguishing, você precisa identificar qual foi o raciocínio central que levou à condenação do banco naquele caso paradigma e ver se esse mesmo raciocínio se sustenta nos fatos do seu caso.

Separando o Trigo do Joio: Ratio vs. Obiter Dictum[9]

Durante a redação de um voto, os Ministros falam sobre muitas coisas. Eles citam doutrina estrangeira, fazem analogias históricas, contam causos e dão opiniões laterais. Tudo isso que não é essencial para o desfecho do caso é chamado de Obiter Dictum (dito de passagem).

Obiter Dictum não vincula ninguém. Ele é “gordura” argumentativa. O perigo é que, às vezes, um juiz de piso pega uma frase de Obiter Dictum de um voto do STF e tenta aplicá-la como se fosse lei.

Seu trabalho no distinguishing é muitas vezes limpar o terreno. Você deve dizer: “Excelência, o trecho citado pela parte contrária é mero obiter dictum. A razão de decidir daquele julgado foi X, baseada no fato Y. No nosso caso, o fato Y não existe”. Saber separar o acessório do principal é o que diferencia o advogado técnico do copiador de modelos.

Como Encontrar a Ratio na Prática (Dicas de Leitura de Acórdãos)

Ler um acórdão de 50 páginas para achar a ratio pode ser exaustivo, mas existem atalhos mentais que ajudam. Primeiro, vá direto ao voto do Relator (ou do redator do acórdão, se o Relator foi vencido). Ignore as ementas num primeiro momento, pois elas são resumos feitos por assessores e frequentemente contêm imprecisões técnicas.

Procure expressões como “o cerne da questão é…”, “o ponto nodal da controvérsia reside em…”, ou “decido desta forma porque…”. É ali que a ratio costuma estar escondida.

Além disso, verifique os votos dos outros ministros. Se a maioria concordou com o resultado, mas cada um usou um fundamento diferente, você tem um “precedente fraco” ou sem ratio definida. Isso é ouro para o distinguishing. Se não há consenso sobre o “porquê”, não há tese vinculante sólida, e você ganha espaço para argumentar a particularidade do seu caso.

Passo a Passo: Como Construir um Argumento de Distinguishing Imbatível

Mapeando os Fatos Relevantes do Seu Caso[3]

Tudo começa na entrevista com o cliente e na análise documental. Você precisa ser um detetive de “diferenças”. Se o precedente vinculante trata de responsabilidade civil em acidentes de trânsito em rodovias, e o seu caso é um acidente em área privada de um condomínio, anote isso. É uma diferença relevante? Talvez.

Pergunte-se: o que o meu caso tem que o caso paradigma não tinha? Pode ser a vulnerabilidade de uma das partes, a natureza do contrato (adesão x paritário), a cronologia dos eventos ou a boa-fé objetiva específica daquela relação.

Não despreze detalhes. Às vezes, a distinção nasce de uma questão processual (ex: no precedente houve perícia técnica, no seu caso o juiz indeferiu a prova). Mapeie todas as variáveis fáticas que possam afastar a lógica do precedente.

O “Confronto Analítico”: Comparando Fato a Fato com o Paradigma

Agora vem a parte da redação jurídica.[1][2] Não basta dizer “é diferente”. O CPC exige que você faça o confronto analítico. Você deve criar, visualmente na sua peça, um paralelo.

Eu gosto de usar a técnica do “Espelho Quebrado”. Você coloca um parágrafo descrevendo o cenário do precedente vinculante (“No Tema 123 do STJ, a Corte decidiu que X, baseando-se no fato de que havia relação de consumo…”). Imediatamente abaixo, você coloca o cenário do seu caso (“No entanto, no caso em tela, a relação é puramente civil/empresarial, regida pelo Código Civil, conforme contrato de fls. 10…”).

Mostre que aplicar a regra do caso A no caso B geraria uma injustiça ou uma ilogicidade, porque as premissas fáticas (o alicerce) não são as mesmas. Se a base é diferente, o teto (a decisão) não pode ser igual.[3]

A Redação da Petição: Onde e Como Inserir o Tópico da Distinção

Não esconda o distinguishing no meio de um parágrafo gigante sobre danos morais. Ele merece destaque. Crie um tópico preliminar ou um capítulo próprio no mérito com o título em negrito: “Da Necessária Distinção (Distinguishing) em Relação ao Tema X do STJ”.

Comece afirmando o respeito ao precedente, mas introduza o “porém”. Use linguagem direta: “Este caso não se amolda ao Tema X pelas seguintes razões objetivas: 1, 2 e 3”.

Se possível, use tabelas dentro da petição. Uma coluna “Fatos do Paradigma” e outra “Fatos do Caso Concreto”. Juízes e assessores têm pouco tempo. Se você desenhar a diferença para eles, suas chances de sucesso aumentam exponencialmente. Facilite a vida cognitiva de quem vai julgar.

Erros Comuns que Podem Afundar Sua Tese de Distinção[8]

O “Distinguishing Inconsistente”: Tentar Diferenciar o Indiferenciável[2][8]

O maior tiro no pé que um advogado pode dar é tentar inventar uma distinção onde ela não existe. Isso é chamado de distinguishing inconsistente ou artificial. Acontece quando a diferença apontada é irrelevante para a norma jurídica.[2][6]

Por exemplo: o precedente diz que quem rouba com arma de fogo tem pena maior. Você tenta distinguir dizendo “Mas Excelência, no precedente a arma era preta, e no meu caso a arma é prata”. Isso é irrelevante para a ratio decidendi (o perigo da arma). Fazer isso mina sua credibilidade. O juiz vai perceber que você está apenas tentando tumultuar e vai rejeitar seus argumentos futuros com mais facilidade.

A distinção deve ser material. A diferença fática deve ser capaz de alterar a incidência da norma. Se a diferença não muda a qualificação jurídica do fato, ela não serve para distinguishing.

Ignorar a Evolução Jurisprudencial (Focar num Julgado Isolado)

Outro erro clássico é fazer a distinção em relação a um julgado antigo que já foi superado ou reafirmado com novos contornos. Às vezes, você distingue seu caso do Leading Case original (o primeiro caso), mas esquece que, depois dele, vieram outros 50 julgados ampliando o entendimento para cobrir exatamente a sua situação.

Antes de alegar a distinção, faça uma pesquisa de “reafirmação de jurisprudência”. Verifique se o Tribunal já não analisou um caso com a “diferença” que você está apontando e decidiu que, mesmo assim, a regra se aplica. Se você não cobrir esse flanco, a outra parte vai trazer esses julgados na contrarrazões e sua tese cairá por terra.

Falta de Clareza na Demonstração do Impacto Jurídico da Diferença Fática[2]

Não basta apontar a diferença fática; você tem que explicar por que essa diferença fática exige uma consequência jurídica distinta.

Muitos advogados param na metade do caminho: “O caso paradigma era de um carro azul, o meu é vermelho”. Ok, e daí? Você precisa completar: “Como o carro é vermelho, ele se enquadra na exceção da Lei de Trânsito X, que não se aplicava ao carro azul”.

Você precisa fazer a ponte entre o Fato Diferente e a Norma Diferente. Se você deixar essa conclusão implícita, corre o risco de o juiz ler, concordar que é diferente, mas achar que a diferença é inócua. O dever de conectar os pontos é seu, não do judiciário. Seja didático. Conduza o raciocínio até a consequência final: a inaplicabilidade do precedente vinculante.


Dominar o distinguishing é o que separa o advogado que apenas protocola papéis daquele que realmente constrói o direito. Em um sistema cada vez mais robotizado e padronizado, a capacidade de gritar “eu sou diferente” e provar isso tecnicamente é uma das habilidades mais valiosas que você pode oferecer ao seu cliente. Use essas diretrizes, estude a ratio decidendi e não tenha medo de desafiar a aplicação automática dos precedentes.

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