Direito Penal é fascinante porque lida com o limite extremo das escolhas humanas. Imagine-se em uma situação onde a única forma de sobreviver é causar um prejuízo a outra pessoa que não tem culpa nenhuma do que está acontecendo. É sobre isso que vamos conversar hoje. O Estado de Necessidade é uma das figuras mais dramáticas do nosso ordenamento jurídico, pois coloca na balança bens valiosos e autoriza você a sacrificar um deles para salvar outro. Não é uma licença para o caos, mas sim uma válvula de escape racional que a lei oferece para momentos de desespero justificado.
Aqui, vamos mergulhar fundo nesse instituto. Esqueça o juridiquês vazio. Quero que você entenda a lógica por trás do artigo 24 do Código Penal como se estivéssemos discutindo o caso do seu cliente no meu escritório, com um café na mesa. Vamos analisar desde a teoria básica até aquelas situações limítrofes que tiram o sono dos juízes, como o furto para saciar a fome ou a escolha de quem salvar em uma emergência médica. Prepare-se, porque o Direito não é matemática e o Estado de Necessidade é a prova viva disso.
O Conceito Fundamental de Estado de Necessidade[1][2][3][4][5]
A Definição Legal do Artigo 24
O Código Penal Brasileiro é cirúrgico ao definir o Estado de Necessidade no seu artigo 24.[3] A lei diz que se considera nessa situação quem pratica um fato típico para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio.[1][2][3][4][5][6][7][8] O ponto chave aqui é a situação de conflito. Você não quer cometer o crime, mas as circunstâncias te obrigam. É o que chamamos de conduta dilemática: ou você age e viola a lei, ou você se omite e perde um bem jurídico relevante, como a sua vida ou a integridade física.
Para você visualizar melhor, pense no exemplo clássico que usamos nas salas de aula: dois náufragos disputando uma única tábua de salvação em alto mar. A tábua só aguenta um. Se um deles empurrar o outro para sobreviver, ele cometeu um homicídio? Tecnicamente, ele matou alguém. Mas, juridicamente, ele estava amparado pelo Estado de Necessidade. A lei entende que, naquele momento, não era exigível que ele se sacrificasse pelo outro.[1][2][3][4][6][7] O instinto de sobrevivência prevalece e o Direito reconhece essa humanidade.
É importante notar que o perigo deve ser “atual”.[4][7][8] A lei brasileira é um pouco rígida com isso, embora a doutrina mais moderna e sensata aceite também o perigo iminente, aquele que está prestes a acontecer. Se você vê um incêndio começando no prédio vizinho e arromba a porta para salvar uma criança, você não precisa esperar o fogo queimar a porta para agir. O Direito Penal não pode exigir heroísmo suicida nem uma passividade estúpida diante do desastre.
A Natureza Jurídica: Excludente de Ilicitude
Você precisa ter clareza de que o Estado de Necessidade é uma “excludente de ilicitude”.[1][2][3][4][5][6][7][8][9][10] Isso significa que, embora o fato seja típico — ou seja, está descrito na lei como crime, como matar, furtar ou destruir coisa alheia —, ele não é ilícito.[11] Não é contrário ao Direito.[4][12] Quando você age amparado por essa excludente, o ato criminoso nasce, mas a ilicitude é removida instantaneamente pela justificativa da necessidade. É como se a lei dissesse: “Eu proíbo matar, exceto se for a única forma de salvar sua vida agora”.
Essa natureza jurídica tem efeitos práticos imensos. Se não há ilicitude, não há crime.[6][8][11] Consequentemente, não há pena. O inquérito policial deve ser arquivado ou o réu deve ser absolvido sumariamente. Não estamos falando de uma desculpa para reduzir a pena ou de um perdão judicial. Estamos falando de um ato lícito. Quem mata em estado de necessidade, respeitados os limites legais, não é um criminoso aos olhos da justiça, mas alguém que agiu conforme o permitido em uma situação excepcional.[2][3][12]
Entretanto, para que essa “mágica” jurídica aconteça, todos os requisitos devem estar preenchidos milimetricamente. Não basta alegar necessidade; é preciso provar que não havia outra saída. Se havia uma forma de evitar o perigo sem cometer o crime, a excludente cai por terra.[3] A natureza jurídica de excludente de ilicitude é poderosa, mas é frágil. Ela depende inteiramente da inexistência de alternativas menos danosas no caso concreto.
O Conflito de Bens e a Teoria Unitária
O Brasil adotou a Teoria Unitária para explicar o Estado de Necessidade.[8] Isso simplifica a nossa vida, mas exige atenção. Segundo essa teoria, o bem que você sacrifica deve ter valor igual ou menor do que o bem que você protege.[3][5][6][7][8] Se você mata uma pessoa para salvar o seu cachorro, não há estado de necessidade, porque a vida humana vale mais que o patrimônio ou a vida animal para o Direito. A balança precisa pender para o seu lado ou ficar equilibrada.
Diferente de outros países que adotam a Teoria Diferenciadora — onde se o bem sacrificado for maior, ainda pode haver exclusão da culpabilidade —, aqui o Código Penal foi taxativo. Se o bem sacrificado for de valor superior, você responde pelo crime, podendo apenas ter uma redução de pena.[7] Portanto, a ponderação de valores é essencial. Vida vale mais que patrimônio. Integridade física vale mais que liberdade. O advogado precisa ter essa tabela de valores constitucionais muito bem desenhada na cabeça.
Essa escolha legislativa reflete uma postura ética do Estado. Ele permite que você cause dano para se salvar, mas não permite que você cause um dano desproporcional. A ideia é que o prejuízo social total seja o menor possível. Sacrificar uma janela (patrimônio) para salvar uma vida é um “lucro” para a sociedade. Sacrificar uma vida para salvar uma janela é um prejuízo inaceitável. A Teoria Unitária nos obriga a fazer essa matemática moral o tempo todo.
Requisitos Indispensáveis para a Configuração
Perigo Atual e a Involuntariedade
O primeiro requisito é a existência de um perigo atual.[1][2][4][6][7][8][9] Não serve um perigo passado, que já acabou, nem um perigo futuro incerto. “Ah, eu acho que aquele cachorro pode me morder semana que vem” não justifica você atirar no animal hoje. O perigo tem que estar acontecendo ou, como já defendemos na prática forense, ser iminente a ponto de não permitir demora. Esse perigo pode vir da natureza, de um animal ou até de uma falha mecânica, diferente da legítima defesa que exige uma agressão humana.[3][11]
Além disso, esse perigo não pode ter sido provocado voluntariamente pelo agente.[1][2][3][4][5][6][7] Se você ateou fogo na sua própria casa para receber o seguro e depois precisou arrombar a casa do vizinho para fugir das chamas, você não pode alegar estado de necessidade para o arrombamento. Você criou o risco dolosamente. A lei não beneficia quem age com torpeza. A doutrina discute se a provocação culposa (sem intenção, por imprudência) impede a alegação, mas a tendência majoritária é que se você criou o risco por querer (dolo), você perde o direito à excludente.
Essa questão da “não provocação voluntária” é uma pegadinha comum em concursos e na prática. Muitos confundem com a legítima defesa, onde você não pode ter provocado a agressão de forma injusta. No estado de necessidade, o buraco é mais embaixo: você não pode ter dado causa à situação de perigo intencionalmente.[5] Se você causou o perigo, você tem o dever de suportar as consequências ou, no mínimo, responder pelos atos praticados para se salvar, sem o manto da licitude.[4]
A Inevitabilidade da Conduta
Este é o requisito mais rigoroso: a inevitabilidade.[4] O Estado de Necessidade é subsidiário.[2][8] Só pode ser invocado se não houver outro meio de escapar do perigo.[4] Se você podia fugir, chamar a polícia, gritar por socorro ou usar uma saída de emergência, você não pode sacrificar o bem alheio. A destruição do bem jurídico de terceiro deve ser a ultima ratio, a última cartada. O Direito Penal só tolera a lesão ao inocente quando ela é absolutamente indispensável.
Imagine que um motorista vê uma criança correndo para a rua. Ele tem duas opções: frear bruscamente ou jogar o carro em cima de um muro alheio. Se frear era possível e seguro, e ele escolheu jogar o carro no muro, ele não está em estado de necessidade. Ele cometeu crime de dano (embora o dano culposo não seja punido no âmbito criminal, haverá ilícito civil). A necessidade exige que a conduta lesiva seja a única forma física possível de salvar o bem jurídico ameaçado naquele instante.[4]
Como advogado, é aqui que muitas teses de defesa falham. O promotor vai sempre argumentar que “havia outra saída”. Cabe a nós demonstrar que, na visão do homem médio colocado naquela situação de estresse extremo, a única porta aberta era aquela que causou o dano. A análise deve ser feita ex ante, ou seja, considerando o que era visível e possível para o agente no momento da ação, e não com a calma e a frieza de quem analisa o processo anos depois no ar-condicionado.
A Proporcionalidade e o Dever Legal
O sacrifício deve ser razoável.[3][4][8][11] Já tocamos nisso na teoria unitária, mas vale reforçar: o bem salvo deve valer mais ou o mesmo que o bem sacrificado. Mas há um detalhe crucial no artigo 24, § 1º: não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.[1][3] Bombeiros, policiais, salva-vidas. Essas pessoas são pagas e treinadas para correr riscos. Um bombeiro não pode deixar de entrar em um prédio em chamas alegando que quer salvar sua própria vida, se o risco for inerente à sua profissão.
Claro que esse dever não é absoluto. Não exigimos heroísmo suicida de ninguém. Se o prédio está desabando e a morte é certa, nem o bombeiro é obrigado a entrar. O dever de enfrentar o perigo existe dentro dos limites do razoável e do equipamento disponível. Mas, em regra, quem tem dever legal (o garante) tem uma barra muito mais alta para alegar estado de necessidade do que o cidadão comum. O comandante do navio, por exemplo, é classicamente o último a sair, justamente por esse dever de tutela sobre os passageiros.
A análise da proporcionalidade também envolve o bom senso. Não se pode matar para salvar patrimônio. Mas e matar para evitar um estupro? A jurisprudência e a doutrina tendem a aceitar, pois a dignidade sexual e a integridade psíquica são bens de altíssimo relevo. A “tabela de pesos” dos bens jurídicos não é estanque, ela flutua conforme o caso concreto e a cultura jurídica do momento, exigindo argumentação afiada do operador do direito.
Classificações Doutrinárias Importantes
Estado de Necessidade Real vs. Putativo
O Estado de Necessidade Real é aquele que existe no mundo dos fatos.[1] O incêndio é real, o naufrágio é real, o ataque do animal é real. Todos os requisitos objetivos estão presentes. Já o Estado de Necessidade Putativo é aquele que só existe na cabeça do agente. É um erro de percepção. A pessoa acha que está em perigo, mas não está. Imagine alguém que vê fumaça em um cinema, grita “fogo”, e na correria machuca outras pessoas para sair. Depois, descobre-se que era apenas gelo seco de um show.
No caso putativo, a solução jurídica é dada pelas regras do erro.[3] Se o erro for plenamente justificado pelas circunstâncias (qualquer pessoa se enganaria), o agente pode ser isento de pena. Se o erro for derivado de imprudência ou negligência (ele poderia ter verificado melhor antes de agir), ele pode responder pelo crime na modalidade culposa, se houver previsão legal. O Estado de Necessidade Putativo não exclui a ilicitude do fato, mas atua na culpabilidade ou na tipicidade, dependendo da teoria do erro adotada.
Tratar de casos putativos é sempre delicado porque envolve provar o estado mental do agente. Você precisa convencer o juiz de que a alucinação de perigo do seu cliente era verossímil. “Excelência, no escuro e com aquele barulho, qualquer um pensaria que o prédio estava caindo”. Essa é a linha de defesa. O Direito não pune quem age baseado em uma percepção errada, mas honesta e razoável, da realidade.
Estado de Necessidade Próprio vs. de Terceiro
Essa classificação é simples, mas tem implicações morais. O Estado de Necessidade Próprio ocorre quando o agente age para salvar um direito seu.[1][2][3][4][7] Eu quebro a vidraça para eu sair do incêndio. O instinto de autopreservação é a base aqui. É a forma mais primitiva e aceita de necessidade. A lei não espera que você se deixe morrer para não quebrar uma janela.
Já o Estado de Necessidade de Terceiro (ou alheio) acontece quando o agente age para salvar outra pessoa.[3][7] Eu quebro a vidraça para salvar uma criança presa. Aqui, a conduta é altruísta. A lei autoriza e até incentiva, em certos casos, que você intervenha para proteger bens jurídicos de terceiros em perigo.[4] Não há exigência de parentesco ou vínculo afetivo.[3][7] Você pode agir em estado de necessidade para salvar um total desconhecido.[5]
A única ressalva é quando o terceiro (o titular do bem em perigo) recusa a ajuda validamente. Se um adulto capaz decide fazer uma greve de fome (colocando a própria vida em perigo) como protesto político, um médico pode intervir à força alegando estado de necessidade de terceiro para alimentá-lo? É uma questão bioética complexa. A tendência majoritária é que a vida é um bem indisponível, autorizando a intervenção, mas a autonomia da vontade vem ganhando força, especialmente em casos de recusa de tratamento por motivos religiosos.
Estado de Necessidade Agressivo vs. Defensivo
Esta distinção é crucial para o bolso do seu cliente. O Estado de Necessidade Defensivo ocorre quando a conduta lesiva do agente se dirige contra a própria coisa ou animal que criou o perigo. Exemplo: um cão feroz ataca você e você mata o cão. Você atingiu o bem (cão) do dono que, por negligência, deixou o perigo acontecer. Nesse caso, você não precisa indenizar o dono do cão. Pelo contrário, talvez ele deva te indenizar pelo susto e risco.
O Estado de Necessidade Agressivo é o mais problemático. Ele ocorre quando, para se salvar de um perigo, você sacrifica o bem de uma pessoa ou coisa totalmente inocente, que não tinha nada a ver com a origem do risco. Exemplo: para desviar de uma criança na rua, você bate no carro estacionado de um terceiro. O dono do carro estacionado não fez nada de errado. Você agiu licitamente no penal (não cometeu crime), mas causou prejuízo a um inocente.
No caso agressivo, a absolvição criminal não apaga a dívida civil.[4] O Código Civil determina que, se você lesou um inocente para se salvar, você deve indenizá-lo. Depois, você que tenha o trabalho de processar quem criou o perigo (o pai da criança, no exemplo) para reaver o dinheiro. É o que chamamos de direito de regresso.[4] Muitos clientes acham isso injusto (“Eu me salvei e ainda tenho que pagar?”), mas é a lógica de que o inocente não pode ficar com o prejuízo final da sua salvação.
Diferenças Cruciais: Estado de Necessidade vs. Legítima Defesa[2][3][5][6][7][8][9][10][11][12]
A Origem do Perigo
Confundir Estado de Necessidade com Legítima Defesa é erro de estagiário.[3] A diferença fundamental está na origem da ameaça. Na Legítima Defesa, você reage a uma agressão injusta e humana.[6][11] Tem alguém tentando te bater, te roubar ou te matar. Existe um “vilão” na história, uma conduta humana ilícita dirigida a você ou a outrem. A reação é contra esse agressor.
No Estado de Necessidade, não precisa haver um vilão. Existe um perigo. Esse perigo pode ser um incêndio, uma enchente, um ataque animal espontâneo, ou até uma situação criada por humano que não seja uma agressão direta (como alguém que deixa uma máquina ligada errado). O perigo é uma situação de fato, não necessariamente um ataque intencional contra você.[1][4][5][6][7][12] Enquanto a legítima defesa é “Eu vs. Você”, o estado de necessidade é “Eu vs. A Situação”.
Essa distinção muda tudo na estratégia de defesa. Se o seu cliente atirou em alguém que vinha para cima dele com uma faca, é legítima defesa. Se ele empurrou alguém para fugir de um desabamento, é estado de necessidade.[2] Identificar a fonte do risco (agressão humana x situação de perigo) é o primeiro passo para enquadrar a excludente correta na peça processual.
O Destinatário da Conduta
Outra diferença gritante é quem paga o pato. Na legítima defesa, a sua reação deve ser direcionada contra o agressor.[5] Você bate em quem está te batendo. Se você, tentando se defender, acerta um terceiro inocente por erro de pontaria (aberratio ictus), ainda se aplica a legítima defesa, mas a lógica é o combate ao injusto agressor. O foco é neutralizar a fonte do ataque.
No estado de necessidade, especialmente o agressivo, a conduta muitas vezes atinge um inocente. Você sacrifica o bem de alguém que não tem nada a ver com o perigo para se salvar. Isso não existe na legítima defesa propriamente dita.[1][9][11] Na legítima defesa, o agressor “merece” a repulsa.[11] No estado de necessidade, o prejudicado é apenas uma vítima das circunstâncias, um “dano colateral” necessário.[4]
Por isso, o estado de necessidade é tratado com mais restrições. Ele exige que não haja outra saída (inevitabilidade).[4][5] Na legítima defesa, você não é obrigado a fugir de forma covarde; você tem o direito de ficar e se defender (dentro da moderação). No estado de necessidade, se dá para fugir (“commodus discessus”), você tem que fugir. Você não tem o “direito” de causar dano ao inocente se pode evitar o confronto com o perigo simplesmente saindo de perto.[2][3][4][7][12]
A Proporcionalidade Comparativa
Na legítima defesa, a proporcionalidade é medida pelos “meios necessários e uso moderado”.[11] Você não pode dar dez tiros em quem te deu um tapa. Mas não se exige uma balança matemática estrita entre os bens.[11] Você pode matar para evitar ser estuprada, ou matar para evitar um sequestro. O bem “vida do agressor” é sacrificado em prol da “liberdade” ou “dignidade” da vítima, e o Direito aceita bem isso porque o agressor agiu de forma injusta.
No estado de necessidade, a régua é mais curta. Como a vítima da sua ação pode ser um inocente, o Direito exige que o bem que você salva seja de valor igual ou superior ao sacrificado.[8][11] Você não pode alegar estado de necessidade matando um inocente para salvar seu carro. Na legítima defesa, se alguém tenta roubar seu carro à mão armada, você pode reagir e, se o bandido morrer no confronto, pode ser legítima defesa (embora polêmico, a defesa do patrimônio com risco à vida do agressor é aceita em certas circunstâncias de repulsa imediata). No estado de necessidade, essa troca (vida alheia inocente por patrimônio próprio) é inadmissível.[6]
Consequências Civis e o Dever de Indenizar
A Ação Civil Ex Delicto
Quando um juiz criminal absolve alguém por estado de necessidade, essa sentença faz coisa julgada no cível? Depende. A absolvição reconhece que o fato não foi crime.[3] Porém, o Direito Civil tem suas próprias regras de responsabilidade. Em regra, a sentença penal que reconhece a excludente de ilicitude tranca a possibilidade de discutir a “culpa” no cível, mas não necessariamente a obrigação de indenizar, que pode subsistir por outros fundamentos legais.
A “actio civilis ex delicto” é a ação de indenização baseada no crime. Se não houve crime, em tese, essa ação específica perde força.[2][4][6][7] Mas o credor (a vítima do dano) pode entrar com uma ação de reparação civil comum. O advogado deve estar atento: ganhar no crime não significa necessariamente que o cliente não vai abrir a carteira no cível. É preciso gerenciar essa expectativa do cliente desde o primeiro dia.
Quando o Agente Deve Pagar (Art. 929 CC)
O Código Civil, no artigo 929, é claro: se a pessoa lesada não for culpada do perigo, ela tem direito a ser indenizada. Voltamos ao exemplo do motorista que bate no carro estacionado para desviar da criança. O dono do carro estacionado (lesado) não teve culpa. Logo, o motorista (agente em estado de necessidade) deve pagar o conserto. É o que chamamos de ato lícito danoso. O ato foi lícito (autorizado pelo direito para salvar a vida), mas gerou um dano indenizável a um terceiro inocente.
Isso parece contraditório para o leigo: “Doutor, se eu não cometi crime, por que tenho que pagar?”. A resposta é: porque o vizinho tem menos culpa ainda. Entre o prejuízo ficar com você (que se salvou) ou com o vizinho (que não tinha nada a ver com a história), a lei prefere que você pague. É uma questão de justiça distributiva e solidariedade social, convertida em responsabilidade civil objetiva nesse ponto.
O Direito de Regresso (Art. 930 CC)
A boa notícia vem no artigo 930 do Código Civil. Quem pagou a indenização tem ação de regresso contra o verdadeiro causador do perigo. Se o motorista pagou o conserto do carro estacionado, ele pode agora processar o pai da criança que correu para a rua (por falta de vigilância) ou a pessoa que o empurrou para a situação de perigo.
Na prática, isso pode ser difícil. Às vezes o causador do perigo é insolvente, desconhecido ou é um animal sem dono (caso fortuito).[1] Se o perigo foi um raio ou uma enchente (fato da natureza), não há contra quem regredir. Nesse cenário, o prejuízo morre na mão de quem agiu em estado de necessidade. O advogado experiente deve analisar a solvência das partes envolvidas. Às vezes, vale mais a pena um acordo rápido com a vítima do dano do que uma briga judicial arrastada visando um regresso incerto.
O Excesso e Suas Consequências[4][8]
O Excesso Doloso
Ocorre o excesso quando o agente, inicialmente amparado pelo estado de necessidade, vai além do que era preciso para se salvar. No excesso doloso, o agente percebe que o perigo já passou ou que a medida é desproporcional, mas continua agindo com a intenção de causar dano extra. Imagine que para se salvar de um cão, você dá um tiro nele. O cão cai, o perigo cessa. Mas, com raiva, você vai lá e dá mais cinco tiros e depois chuta o dono do cão.
Nesse caso, você responde pelo excesso. A excludente cobre apenas o estritamente necessário para afastar o perigo.[7] O “plus”, o que sobrou, é crime. No excesso doloso, você responde por crime doloso (homicídio, lesão corporal, dano) em relação aos atos excedentes. O juiz vai decotar a parte lícita da conduta e punir a parte ilícita. É uma linha tênue que exige perícia técnica para determinar onde acabou a necessidade e onde começou a vingança ou a maldade.
O Excesso Culposo
O excesso culposo acontece por erro de cálculo, medo ou afobação. O agente não quer o resultado excessivo, mas acaba causando-o por falta de cuidado na mensuração da reação. Você joga uma pedra para afastar um animal, mas escolhe uma pedra grande demais que, além de assustar, mata o animal e ricocheteia atingindo uma pessoa. Você não queria isso, mas foi imprudente.
O Código Penal diz que o agente responde pelo excesso doloso ou culposo. Se o excesso foi culposo, e o crime previsto tem modalidade culposa, você será punido. Porém, as penas são bem mais brandas. Muitas vezes, na prática, conseguimos descaracterizar o excesso culposo argumentando o “terror da situação”. Como exigir precisão cirúrgica de alguém que está tremendo de medo de morrer? Essa tese psicológica é fortíssima no Tribunal do Júri e na defesa técnica.
A Exculpante por Inexigibilidade de Conduta Diversa
Existe uma situação curiosa: e se o bem sacrificado for de valor maior que o bem salvo? Pela teoria unitária (adotada pelo CP), não é estado de necessidade justificante. É crime. Mas, pense comigo: se você está num incêndio e a única saída é destruir uma obra de arte milionária (patrimônio > vida? Não, vida ganha. Vamos inverter). Digamos que você é coagido a matar alguém para não levar um tapa. Não, isso é coação. Vamos ao exemplo clássico da “tábua de salvação” mas com inversão de valores.
A doutrina admite que, em casos extremos onde o bem sacrificado vale mais, mas a pressão psicológica era insuportável, pode-se alegar a “inexigibilidade de conduta diversa”. Não exclui a ilicitude (o crime existe), mas exclui a culpabilidade (não há pena).[4] É uma válvula de escape supralegal. Se qualquer ser humano normal, naquela situação, faria a mesma loucura, o Direito não pode punir. É o reconhecimento da fragilidade humana diante do terror.
Aplicações Práticas e Casos Polêmicos
O Furto Famélico
Este é o exemplo rainha do estado de necessidade na jurisprudência brasileira. A pessoa que furta comida para não morrer de fome.[7] O STF e o STJ têm entendimento consolidado de que o furto famélico configura estado de necessidade, desde que seja a única saída (inevitabilidade) e que a subtração seja de bens essenciais para a subsistência imediata. Não vale furtar picanha e cerveja para o churrasco. Tem que ser o pão, o leite, o remédio básico.
Para o advogado, a defesa do furto famélico é belíssima. Ela humaniza o réu. Mostra que o crime foi um ato de sobrevivência, não de malícia. A sociedade e os juízes tendem a ser compreensivos. Mas é preciso provar a situação de penúria extrema. Não basta ser pobre; tem que estar em situação de perigo atual à saúde ou à vida pela inanição. É o estado de necessidade salvando a dignidade humana contra a frieza da proteção patrimonial.
A “Escolha de Sofia” na Medicina
Em situações de catástrofe ou pandemia (como vivemos recentemente), médicos enfrentam o dilema de ter um respirador para dois pacientes. Quem vive? Essa “triagem” é estado de necessidade puro. O médico tem o dever de salvar, mas impossibilidade física de salvar ambos. Ele escolhe um (baseado em critérios técnicos de sobrevida) e deixa o outro perecer.
Juridicamente, o médico não comete homicídio omissivo contra o paciente que morreu. Ele agiu em estado de necessidade de terceiro (salvando o outro paciente), amparado pela inexigibilidade de outra conduta. O Conselho Federal de Medicina cria protocolos para dar segurança jurídica a essas escolhas, mas, no fundo, é o artigo 24 do Código Penal que impede que esses profissionais saiam do hospital algemados após um plantão caótico.
Abatimento de Animais Perigosos
Imagine que uma onça pintada (animal em extinção, proteção ambiental rigorosa) ameace atacar um grupo de turistas no Pantanal. O guia abate o animal. Ele cometeu crime ambiental? Não. Estado de necessidade. O bem jurídico “vida humana” prepondera sobre o bem jurídico “fauna silvestre”, por mais preciosa que ela seja.
A polêmica surge quando o perigo não é tão claro. O fazendeiro que mata a onça porque ela pode comer seu gado no futuro. Aí não é estado de necessidade (falta atualidade).[7][9] Ou mata porque ela comeu uma vaca (patrimônio vs. fauna, discussão complexa, mas tende a não ser aceito se houver outros meios de afugentar). O advogado ambientalista usa o estado de necessidade como escudo, mas deve provar que o gatilho foi apertado diante de um risco iminente e insuperável à vida ou segurança, não apenas por conveniência econômica.
Quadro Comparativo: Estado de Necessidade vs. Outros Institutos[12]
Para fechar e organizar suas ideias, veja como o Estado de Necessidade se diferencia dos seus “vizinhos” jurídicos:
- Estado de Necessidade:
- Legítima Defesa:
- Estrito Cumprimento do Dever Legal:
- Origem: Ordem da lei ou obrigação funcional.
- Ação: Prática de ato que seria crime, mas é determinado por lei (ex: policial prender alguém).
- Requisito: Atuar dentro dos limites estritos da lei.
- Bem jurídico: O interesse público ou a ordem legal prevalecem.
Espero que essa conversa tenha esclarecido as nuances desse instituto. O Estado de Necessidade é a prova de que o Direito não é cego à realidade crua da vida. Ele entende que, às vezes, para sobreviver, regras precisam ser quebradas, mas cobra um preço alto de prova e responsabilidade para quem ousa usar essa carta. Se seu cliente estiver nessa situação, seu trabalho é reconstruir o cenário de desespero e mostrar ao juiz que, naquele momento, não havia escolha. A necessidade, afinal, não conhece lei — mas a lei conhece a necessidade.
