O Guia Definitivo da União Estável Post Mortem: Protegendo Seus Direitos
Perder um companheiro é, sem dúvida, um dos momentos mais difíceis que alguém pode enfrentar na vida. Além da dor do luto e da ausência emocional, muitas vezes nos deparamos com uma realidade burocrática dura e fria que exige atenção imediata. Se você vivia com seu parceiro ou parceira sem ter oficializado a relação em cartório, pode estar sentindo uma insegurança tremenda sobre o futuro do seu patrimônio e dos seus direitos. É muito comum que, nesse momento de fragilidade, surjam dúvidas se você terá direito à pensão, à casa onde moram ou aos bens que construíram juntos.
A boa notícia é que o Direito Brasileiro evoluiu muito e hoje protege as famílias formadas pelo afeto, e não apenas aquelas chanceladas por um papel assinado previamente. Como advogado e professor, já atendi inúmeros casos onde a informalidade da relação gerou medo, mas que, com a estratégia correta, conseguimos garantir a dignidade e o sustento de quem ficou. A união estável é uma entidade familiar reconhecida pela Constituição, e a morte de um dos companheiros não apaga a história que vocês construíram. Pelo contrário, é o momento em que essa história precisa ser contada e provada para o Estado.
Neste artigo, vou conversar com você como se estivéssemos no meu escritório, tomando um café. Sem “juridiquês” desnecessário, mas com a profundidade técnica que o seu caso exige. Vamos explorar juntos como transformar a sua vivência diária e o amor que vocês compartilharam em provas jurídicas robustas. O objetivo aqui é te dar as ferramentas para que você não seja apenas um espectador, mas o protagonista na defesa do seu legado e da sua família.
Entendendo a União Estável e Seus Requisitos Legais[1][2][3][4][5][6][7][8][9][10]
Para que possamos buscar o reconhecimento dos seus direitos, o primeiro passo é entender o que o juiz ou o tabelião vai procurar na sua história. A lei não exige que vocês morem sob o mesmo teto o tempo todo, nem que tenham filhos, e muito menos que tenham um “papel” assinado. O Código Civil Brasileiro define a união estável baseada em três pilares fundamentais: a convivência deve ser pública, contínua e duradoura.[1][4][7][8] Mas o “pulo do gato”, aquele detalhe que diferencia um namoro de uma união estável, é o objetivo de constituir família.[8] É esse elemento subjetivo que vamos precisar demonstrar com clareza.
A convivência pública significa que vocês não escondiam a relação de ninguém. A sociedade, os vizinhos, o porteiro do prédio, a família extensa e os colegas de trabalho reconheciam vocês como um par, como “marido e mulher” ou companheiros. Não se trata de postar fotos no Instagram todos os dias, mas sim de ter uma reputação social de casados. Se vocês iam a festas de família juntos, frequentavam eventos sociais como um casal e eram vistos assim pela comunidade, o requisito da publicidade já começa a ser preenchido. É a fama social da relação que importa aqui.
Já os requisitos de ser uma relação “contínua e duradoura” trazem a ideia de estabilidade.[1][2][4][5][7][8] Não existe um prazo mínimo fixado em lei — aquela lenda urbana de que “precisa de 5 anos” ou “2 anos” já caiu por terra há muito tempo. O que importa é a estabilidade do vínculo. Um relacionamento de meses pode ser considerado união estável se houver intensidade e intenção clara de família, enquanto um relacionamento de anos pode ser apenas um namoro se cada um mantiver vidas completamente separadas. O juiz vai analisar se havia uma comunhão de vidas, um “nós” acima do “eu” e do “você”.
A Intenção de Constituir Família (Intuitu Familiae)[2][8]
O elemento mais complexo e mais importante dessa equação é o chamado intuitu familiae, ou o ânimo de constituir família. É aqui que muitos processos são ganhos ou perdidos. Não basta apenas morar junto para dividir despesas, como fazem estudantes em uma república. É preciso provar que existia um projeto de vida em comum, um suporte mútuo, onde um cuidava do outro como se fossem, de fato, uma família.[1][2][4][5][8]
Imagine a seguinte situação: o casal mora junto, mas cada um compra suas coisas, não se preocupam com o bem-estar do outro e, se um adoece, o outro não se envolve. Isso dificilmente será união estável. Agora, pense no casal que, mesmo morando em casas separadas (o que é permitido), planeja o futuro, faz compras conjuntas para o lar, cuida um do outro na doença e se apresenta como suporte emocional e financeiro. Esse cuidado recíproco é a alma da união estável. Você precisa buscar na sua memória fatos que demonstrem essa parceria irrestrita.
Muitas vezes, a prova desse ânimo de família está nos detalhes do dia a dia. Quem era o contato de emergência no plano de saúde? Quem ia às reuniões da escola dos filhos (mesmo que fossem enteados)? Quem organizava as festas de fim de ano? O Direito de Família moderno olha para a solidariedade entre o casal.[2] Se vocês agiam como uma unidade familiar perante o mundo e entre quatro paredes, a lei tende a proteger essa relação. O nosso trabalho será traduzir esses gestos de afeto em argumentos jurídicos.
A Questão da Coabitação e do Tempo[1]
Como mencionei brevemente, morar junto não é requisito obrigatório, embora seja um forte indício.[2] O Supremo Tribunal Federal já sumulou o entendimento de que a coabitação não é indispensável. Existem casais que vivem em casas separadas por motivos de trabalho, cuidado com pais idosos ou simples preferência pessoal, e nem por isso deixam de ser uma família. Se esse for o seu caso, não desanime. A prova será um pouco mais trabalhosa, mas é plenamente possível. Teremos que focar mais na dependência emocional e na comunhão de vida do que no endereço do CEP.
Sobre o tempo de duração, a lei é silente quanto a prazos mínimos, e isso é proposital. A vida é dinâmica e as relações também. Um casal pode decidir morar junto e formar família em questão de semanas, e se, infelizmente, um deles vier a falecer pouco tempo depois, a união estável pode ser reconhecida se a intenção de família já estava consolidada. O tempo serve como um indicador de estabilidade, mas não é um relógio matemático. Não se prenda a contar dias, mas sim a contar a densidade da relação nesse período.
Entretanto, é claro que uma relação de décadas tem uma “presunção” natural de estabilidade maior do que uma de meses. Se o relacionamento foi curto, precisaremos de provas mais contundentes da intenção de família, como uma gravidez, a compra de um imóvel conjunto ou uma conta bancária solidária. Se o relacionamento foi longo, muitas vezes a própria prova testemunhal já é suficiente para atestar a estabilidade. O importante é que a relação não tenha sido apenas um “ficar” esporádico, sem compromisso e sem planos.
Impedimentos Legais que Você Precisa Saber[9]
Um ponto crucial que preciso alertar você, como seu advogado, é sobre os impedimentos matrimoniais. A lei brasileira não permite a união estável se uma das partes for casada de papel e ainda viver com o cônjuge.[7] A união estável exige lealdade e exclusividade, assim como o casamento. Se o seu parceiro ainda era tecnicamente casado no papel com outra pessoa, mas já estava separado de fato (ou seja, não viviam mais como casal), a sua união estável pode, sim, ser reconhecida.[1][2][3] A separação de fato é a chave aqui.
Por outro lado, se ele mantinha uma “vida dupla”, vivendo com a esposa e com você ao mesmo tempo, o judiciário tende a tratar a segunda relação como concubinato, o que retira grande parte dos direitos previdenciários e patrimoniais. É uma situação dura, mas precisamos ser realistas. O sistema jurídico brasileiro é monogâmico e não protege, via de regra, relações simultâneas.
Portanto, um dos primeiros documentos que vamos analisar é a certidão de casamento do falecido (se ele já foi casado). Se não houver averbação de divórcio, teremos que provar que ele já estava separado de fato da ex-esposa quando começou a viver com você. Isso é feito provando endereços diferentes, testemunhas que confirmem o fim daquela relação anterior e a constituição pública da nova família com você.[2] É um detalhe técnico, mas que faz toda a diferença no resultado final do processo.
O Arsenal Probatório: Documentos Essenciais
Agora que já entendemos o conceito, vamos para a prática: como provar? No Direito, costumamos dizer que “alegar e não provar é o mesmo que não alegar”. Em uma ação post mortem, como a outra parte não está mais aqui para confirmar os fatos, o juiz será muito exigente com as provas materiais. Você precisa reunir tudo o que tiver que vincule o seu nome ao dele.[3] Não despreze nenhum papel, por mais simples que pareça. O convencimento do juiz se dá pelo conjunto da obra, pela soma de pequenos indícios que formam uma verdade incontestável.
A prova documental é a rainha nesse tipo de processo. Documentos oficiais têm um peso enorme porque são dotados de fé pública ou foram emitidos por instituições sérias. O ideal é que tenhamos documentos que abranjam todo o período da relação, do início até o óbito, para demonstrar a continuidade. Se você tiver apenas documentos muito antigos ou apenas muito recentes, pode parecer que a relação teve pausas ou que só começou no final. Uma “linha do tempo” documental é a melhor estratégia.
Além disso, não podemos esquecer que vivemos na era digital. As provas tecnológicas ganharam um espaço gigantesco nos tribunais de família. O que antes se provava com cartas de amor, hoje se prova com prints de WhatsApp, posts no Facebook e localização do Google Maps. Vamos ter que fazer uma varredura na sua vida digital e na dele para encontrar esses rastros de afeto e convivência. Muitas vezes, uma conversa de aplicativo onde ele te chama de “minha esposa” ou discute o orçamento da casa vale mais do que dez testemunhas.
Provas Documentais Clássicas e Robustas
Vamos começar pelo básico, aquilo que é “batata” para o juiz aceitar. Verifique se você possui apólices de seguro de vida onde você figura como beneficiária.[1] Esse é um documento fortíssimo, pois demonstra a vontade dele de te proteger financeiramente. Da mesma forma, a declaração de Imposto de Renda é vital: se ele te colocava como dependente na Receita Federal, é uma confissão oficial da existência da união perante o Estado.
Contas bancárias conjuntas ou cartões de crédito adicionais também são excelentes provas. Elas demonstram que havia uma confusão patrimonial, uma confiança mútua na gestão do dinheiro, o que é típico de famílias. Outro documento clássico é o comprovante de residência.[2][5][10] Se vocês têm contas de luz, água ou telefone chegando no mesmo endereço, em nomes diferentes ou no mesmo nome, isso prova a coabitação. Contratos de aluguel onde ambos figuram como locatários ou fiadores um do outro também são provas de ouro.
Não podemos esquecer dos registros em associações e clubes. Se ele te colocou como dependente no clube recreativo, na carteirinha do SESC, ou no plano de saúde da empresa, isso é prova de reconhecimento público da relação. Certidões de nascimento de filhos em comum, obviamente, provam o vínculo biológico e a relação amorosa em algum momento, mas sozinhas não provam a união estável atual; elas devem vir acompanhadas de provas de que o casal continuou junto criando a prole.
O Poder da Prova Digital e Redes Sociais
Hoje em dia, a nossa vida está no celular. Para comprovar a união estável post mortem, vamos fazer uma “auditoria” nas redes sociais. Fotos postadas em datas comemorativas, viagens, festas de fim de ano, todas com legendas carinhosas e comentários de amigos e familiares reforçando o casal, servem para provar a publicidade da relação. O juiz vai ver que vocês se apresentavam ao mundo como um par.
Mas cuidado: prints de conversas de WhatsApp precisam ser apresentados da forma correta. O ideal é fazer uma Ata Notarial no cartório, onde o tabelião certifica que aquelas conversas são reais e estão no celular. Isso evita que a outra parte alegue que as imagens foram montadas. Nessas conversas, buscamos diálogos sobre o cotidiano da casa, pagamentos de contas, discussões sobre a educação dos filhos, e declarações de afeto.
Emails também são úteis, especialmente trocas de mensagens sobre reservas de hotéis, passagens aéreas compradas para ambos ou emails institucionais onde um se apresenta como cônjuge do outro. Se vocês tinham senhas compartilhadas de serviços de streaming (Netflix, Spotify) ou de aplicativos de delivery, isso também pode ser usado como indício de intimidade e vida em comum. A tecnologia deixa rastros, e nós vamos usar esses rastros a seu favor.
Testemunhas: A Voz da Sociedade
Quando a prova documental é escassa, a prova testemunhal ganha um peso decisivo.[1] Mas não serve qualquer testemunha. Amigos muito íntimos que frequentam a casa são bons, mas podem ser vistos como “interessados” em ajudar. As melhores testemunhas são aquelas que têm um distanciamento emocional, mas que conviviam com o casal: o porteiro do prédio que via vocês saindo juntos todo dia, o vizinho de porta, o síndico, ou colegas de trabalho que sabiam da relação.
Essas pessoas vão depor em juízo para confirmar a “posse do estado de casado”. Elas dirão ao juiz: “Sim, eu os conhecia como marido e mulher”, “Eles iam à padaria juntos”, “Ele sempre falava dela como esposa”. A credibilidade da testemunha é fundamental.[1] Por isso, evite arrolar parentes muito próximos, como irmãos ou pais, pois eles são ouvidos apenas como informantes e o depoimento deles tem menos valor probatório legal, já que possuem interesse na causa.
Prepare mentalmente quem são essas pessoas na sua vida. Pense em quem acompanhou a evolução do relacionamento. Pessoas que estiveram presentes em momentos de doença, que frequentaram os aniversários, que viram a dinâmica do casal. O depoimento delas deve ser firme e detalhado. Não basta dizer “eles namoravam”, elas precisam descrever situações que demonstrem a vida familiar.
Caminhos Processuais para o Reconhecimento
Você deve estar se perguntando: “Ok, tenho as provas, mas onde eu entro com esse pedido?”. Existem basicamente dois caminhos, e a escolha depende inteiramente da concordância ou não dos herdeiros do falecido (filhos, pais, etc.).[2] Se houver harmonia na família, o caminho é mais rápido e barato. Se houver briga por herança, o caminho será necessariamente judicial e mais litigioso.
A estratégia processual que vamos adotar define a velocidade com que você terá acesso aos seus direitos. Muitas vezes, vale a pena tentar uma composição amigável com os herdeiros antes de partir para o litígio. Uma boa conversa, mediada por advogados, pode transformar um processo de anos em uma resolução de meses. A postura colaborativa costuma ser mais vantajosa para todos os envolvidos, pois evita que o patrimônio seja corroído por custas processuais e pela desvalorização do tempo.
Independentemente da via escolhida, o objetivo final é obter um documento formal — seja uma escritura pública ou uma sentença judicial — que declare: “Sim, Fulano e Beltrana viveram em união estável de tal data até a data do óbito”. Esse papel é a chave mestra que abre as portas do INSS, do banco, do cartório de imóveis e da seguradora. Sem ele, você fica de mãos atadas.
A Via Extrajudicial (Cartório de Notas)[7]
Se o falecido não deixou testamento e todos os herdeiros são maiores, capazes e estão de acordo com o reconhecimento da sua união, você tirou a sorte grande. Nesse cenário, podemos fazer tudo diretamente no Cartório de Notas.[7] É o que chamamos de reconhecimento de união estável post mortem extrajudicial. Basta que você e os herdeiros compareçam ao cartório, assistidos por um advogado, e declarem a existência da união.
O tabelião lavrará uma escritura pública reconhecendo a união e, no mesmo ato, já pode ser feito o inventário e a partilha dos bens. É um procedimento extremamente célere, podendo ser resolvido em questão de semanas. A presença do advogado é obrigatória por lei, mas um único advogado pode representar toda a família, o que reduz custos.
No entanto, atenção: se houver filhos menores de idade (seus ou de outro relacionamento dele) ou se o falecido deixou testamento, a via extrajudicial geralmente é vedada ou exige autorização judicial prévia, dependendo do estado onde você mora. Mesmo assim, se houver consenso entre os adultos, o processo judicial tende a ser muito mais rápido, sendo apenas uma homologação de acordo.
A Ação Declaratória de União Estável[1][2][3][5][6][7][8][9][10][11]
Quando não há acordo — por exemplo, os filhos do primeiro casamento não aceitam sua relação ou dizem que era apenas um namoro para não dividir a herança — não há outra saída: teremos que ajuizar uma Ação Declaratória de Reconhecimento e Dissolução de União Estável Post Mortem contra os herdeiros. Aqui o “bicho pega”, pois haverá contraditório. Eles tentarão provar que não era união estável, e você tentará provar que era.
Nesse processo, que corre na Vara de Família, o juiz ouvirá testemunhas, analisará documentos e, ao final, dará uma sentença. É um processo que pode ser demorado, levando anos, dependendo da complexidade e da quantidade de recursos. Por isso a importância de ter aquele “arsenal probatório” bem montado antes mesmo de entrar com a ação. Quanto mais forte for a sua prova inicial, maior a chance de um acordo no meio do caminho ou de uma sentença favorável rápida.
Uma dica importante: muitas vezes pedimos o reconhecimento da união estável “incidentalmente” dentro do próprio processo de inventário. Se o juiz do inventário perceber que a prova é robusta e documental, ele pode reconhecer a união ali mesmo, sem precisar de um processo separado.[1] Mas se houver muita briga e necessidade de ouvir testemunhas, ele vai remeter as partes para a ação declaratória autônoma.
O Reconhecimento Administrativo no INSS[1]
Se o seu objetivo principal é apenas a pensão por morte e não há bens a partilhar, às vezes você não precisa nem do Judiciário nem do Cartório. O próprio INSS pode reconhecer a união estável administrativamente.[1] Você agenda o pedido de pensão e leva as provas (no mínimo 3 provas materiais contemporâneas, segundo a regra atual) para o servidor do INSS analisar.
Se o INSS negar (o que é comum, pois eles são bem rígidos), aí sim partimos para a Justiça Federal para brigar pela pensão. Mas vale a pena tentar a via administrativa primeiro. Documentos como a certidão de nascimento de filhos em comum, casamento religioso ou prova de mesmo domicílio são fortíssimos no INSS. Lembre-se que para a pensão, a dependência econômica na união estável é presumida, você só precisa provar o vínculo.
Muitos clientes cometem o erro de achar que a sentença da Vara de Família obriga o INSS a pagar a pensão automaticamente. Não é bem assim. O INSS é uma autarquia federal e tem regras próprias. Contudo, uma sentença judicial cível é uma prova documental poderosa (“prova plena”) que dificilmente o INSS conseguirá ignorar se for apresentada no processo administrativo ou judicial previdenciário.
Diferenciando União Estável de Namoro Qualificado[1][2][3][7]
Aqui entramos em uma zona cinzenta que tem tirado o sono de muitos juristas e famílias: a distinção entre união estável e o tal do “namoro qualificado”. Esse termo surgiu para descrever aquelas relações modernas onde o casal está praticamente sempre junto, viaja, dorme na casa um do outro, conhece a família, mas não tem a intenção de constituir família naquele momento. É um namoro sério, um “passo antes” da união estável.
No namoro qualificado, existe afeto, existe convivência pública, existe tempo, mas falta o intuitu familiae. O casal projeta uma família para o futuro (“um dia vamos casar”), mas no presente vivem vidas autônomas. Na união estável, a família já existe no presente (“já vivemos como casados”). Essa diferença sutil de tempo verbal (futuro x presente) muda tudo em termos de herança.
Se o juiz entender que era apenas um namoro qualificado, você não é herdeira e não tem direito à meação dos bens, nem pensão. Você sai do relacionamento apenas com o que é seu, sem direito ao patrimônio construído pelo falecido. Por isso, os herdeiros (filhos) costumam alegar que a relação era apenas um namoro qualificado para não dividir os bens com a viúva.
A Linha Tênue da Coabitação[2]
Muitas pessoas acham que se dormiam juntos nos fins de semana, é união estável. Cuidado. No namoro qualificado, é comum o casal passar dias na casa um do outro, ter escova de dentes e pijama lá. Isso não basta para configurar união estável.[1] A coabitação na união estável tem caráter de residência definitiva, de lar comum.
Para fugir da tese do namoro qualificado, precisamos provar a interdependência. No namoro, cada um paga suas contas, cada um tem seus planos individuais de carreira e vida, que apenas se cruzam. Na união estável, os planos se fundem. Se vocês juntaram dinheiro para comprar o carro dele, se você pagou a reforma da casa dele, isso mostra uma comunhão de esforços típica de família, e não de namorados.
A chave para desqualificar o argumento do “namoro” é mostrar a irreversibilidade da relação. Namoros terminam e cada um vai para seu canto. Na relação de vocês, se terminasse, haveria uma ruptura de uma estrutura familiar montada? Se a resposta for sim, estamos diante de uma união estável.[1][2][4][5][8][9][10]
Como o Tribunal Decide
Os tribunais têm analisado caso a caso com muita cautela. Eles buscam elementos objetivos. Por exemplo, a existência de um “Contrato de Namoro” (sim, isso existe e pode ser feito em cartório) é uma prova fortíssima de que o casal não queria união estável. Se vocês não tinham contrato, o juiz vai olhar para o comportamento social.
Se o falecido te apresentava como “minha namorada” nas redes sociais até o dia da morte, isso pesa contra a união estável. Se ele te apresentava como “minha mulher”, pesa a favor. Parece bobagem, mas a nomenclatura usada reflete a intenção interna do casal. Outro ponto analisado é a dependência financeira: se havia suporte financeiro constante entre as partes, a balança pende para a união estável, pois namorados geralmente não sustentam uns aos outros.
Para te ajudar a visualizar melhor onde o seu caso se encaixa, preparei um quadro comparativo simples, mas revelador, colocando lado a lado a União Estável, o Namoro Qualificado e o Casamento. Veja onde as características da sua relação mais se assemelham.
| Característica | Namoro Qualificado | União Estável | Casamento Civil |
| Formalização | Inexistente ou Contrato de Namoro | Escritura Pública ou Situação de Fato | Certidão de Casamento |
| Estado Civil | Solteiros (não muda o estado) | Solteiros (mas equiparados a casados) | Casados |
| Objetivo | Constituír família no futuro | Constituír família no presente | Constituír família no presente |
| Coabitação | Opcional e esporádica | Comum (mas não obrigatória) | Dever de coabitação (regra) |
| Regime de Bens | Sem comunicação de bens | Comunhão Parcial (regra geral) | Escolhido pelos noivos |
| Direito à Herança | Não tem direito | Tem direito (como o cônjuge) | Tem direito |
| Pensão por Morte | Não tem direito | Tem direito | Tem direito |
Estratégias de Defesa
Se você percebe que seu caso está na zona cinzenta, nossa estratégia será focar na “aparência de casamento”. Vamos reunir provas de que vocês agiam como uma unidade econômica. Empréstimos feitos por um em benefício do outro, compra de móveis para a casa, ou até mesmo o cuidado com animais de estimação compartilhados (“nossos filhos de quatro patas”) podem ajudar a convencer o juiz de que o laço era mais profundo que um namoro.
O depoimento pessoal é crucial aqui.[1] Você terá que explicar ao juiz como era a rotina, quem pagava o quê, como eram as decisões importantes. A espontaneidade e a riqueza de detalhes sobre a vida doméstica muitas vezes desmontam a tese fria dos herdeiros de que “era só um namoro”. A verdade real tende a aparecer nos detalhes.
Direitos e Consequências Patrimoniais[1][2][3][4][5][6][8][9][10]
Por fim, vamos falar do que realmente está em jogo: o patrimônio e sua segurança financeira. Reconhecida a união estável post mortem, você passa a ter status de herdeira e meeira, equiparada à esposa casada no papel. Isso muda tudo. Sem esse reconhecimento, você é juridicamente uma estranha ao inventário.
A “meação” é o direito à metade dos bens adquiridos onerosamente durante a união. Se vocês compraram um apartamento enquanto estavam juntos, metade é seu por direito próprio (meação), e a outra metade é a herança que será dividida. Não importa se o apartamento está só no nome dele; se foi comprado durante a união (e não foi com dinheiro de herança ou doação), você tem direito à sua metade. Isso é automático no regime da comunhão parcial de bens, que é o padrão da união estável.
Além da meação, você concorre na herança sobre os bens particulares dele (aqueles que ele já tinha antes de te conhecer), competindo com os filhos. A regra é complexa e cheia de detalhes matemáticos, mas o resumo é: você não sai de mãos abanando. O reconhecimento garante que você não será despejada da sua vida financeira.
Direito Real de Habitação
Este é talvez o direito mais humano e importante para a viúva ou viúvo. O Direito Real de Habitação garante que você possa continuar morando no imóvel onde o casal residia, de graça, até o fim da sua vida, mesmo que o imóvel tenha outros herdeiros. Os filhos não podem te vender a casa e te colocar na rua, nem cobrar aluguel.
Esse direito independe do regime de bens e independe de você ter outra casa. O objetivo da lei é evitar que, além de perder o companheiro, você perca o teto. Para ter esse direito, é fundamental provar que aquele era o lar da família.[1][8] O reconhecimento da união estável ativa automaticamente essa proteção. É um escudo poderoso contra pressões familiares.
Muitas vezes, os herdeiros pressionam a companheira a sair do imóvel logo após o velório. Não ceda a essa pressão. Enquanto a união estável estiver em discussão ou reconhecida, sua posse sobre o imóvel é legítima e protegida. Se tentarem te tirar à força, podemos pedir uma medida liminar de manutenção de posse.
Pensão por Morte[1][2][3][4][5][6][7][8][9][11]
A pensão por morte é um benefício previdenciário pago pelo INSS aos dependentes. Como companheira, você é dependente de classe 1, ou seja, não precisa provar que ele pagava suas contas, a dependência é presumida pela lei. O valor é dividido entre você e outros dependentes (como filhos menores ou ex-esposa que recebia pensão alimentícia).
O reconhecimento da união estável é o passaporte para esse benefício.[8] A duração da pensão vai depender da sua idade e do tempo de união. Se a união tinha menos de 2 anos, a pensão dura apenas 4 meses. Se tinha mais de 2 anos, a duração varia conforme sua idade, podendo ser vitalícia se você tiver mais de 45 anos (na regra atual).
Planejar esse pedido é essencial. Um erro no INSS pode demorar meses para ser corrigido no recurso. Por isso, a organização da documentação que discutimos lá no início é tão vital. O INSS é burocrático, mas com a prova certa, o benefício é concedido.
O Papel do Inventário[1][3][7][11]
O inventário é o processo onde se listam bens e dívidas para dividir o que sobra. Você deve pedir para ser habilitada no inventário como inventariante (a pessoa que administra os bens até a partilha). Estar na posse da administração dos bens te dá uma segurança maior para evitar que herdeiros dilapidem o patrimônio antes da divisão.
Se a união estável ainda não foi reconhecida, o juiz do inventário pode reservar o seu quinhão (a sua parte provável) até que a ação de reconhecimento termine. Isso impede que os herdeiros gastem tudo e, quando você ganhar a ação, não tenha mais nada para receber. É uma medida cautelar indispensável.
Não deixe para depois. O prazo para abrir o inventário é de 2 meses após o óbito para evitar multas fiscais. Mesmo que a documentação da união estável não esteja 100% pronta, é importante dar o pontapé inicial no processo para resguardar seus direitos e mostrar diligência.
Espero que essa conversa tenha clareado o caminho para você. Provar uma união estável post mortem é um desafio, sim, mas está longe de ser impossível. Com organização, as provas certas e uma boa estratégia jurídica, é possível fazer valer a verdade da vida que vocês tiveram.[1] A lei existe para proteger o afeto e a dignidade da família, seja ela formalizada ou não. Se organize, respire fundo e busque seus direitos. Você não está sozinha nessa jornada.
