Passo a passo do inventário em cartório
Realizar o inventário de um ente querido é, sem dúvida, um dos momentos mais delicados que enfrentamos. Além do luto natural pela perda, a família se vê diante de uma montanha de burocracia que precisa ser escalada para regularizar a transmissão do patrimônio.
Como advogado atuante na área de sucessões há anos, já vi muitas famílias se desestruturarem por falta de informação correta ou por medo dos custos. A boa notícia é que o cenário mudou drasticamente nas últimas décadas. O que antes era sinônimo de anos de brigas nos corredores do Fórum, hoje pode ser resolvido em questão de semanas no Cartório de Notas.
Este guia não é apenas um manual técnico; é uma conversa franca sobre como você pode resolver essa pendência jurídica com a menor dor de cabeça possível. Vamos desmistificar o “bicho-papão” do inventário e te mostrar o caminho das pedras para a via extrajudicial.
O Terreno Legal: Entendendo o Inventário Extrajudicial[1][2][3][4][5][6][7][8][9][10][11]
Antes de sairmos correndo para reunir papéis, precisamos entender onde estamos pisando. O inventário extrajudicial não é uma “jeitinho” ou uma brecha na lei. Ele é um instituto robusto, criado para desafogar o Judiciário e facilitar a vida do cidadão.
A Revolução da Lei 11.441/07
Até 2007, não importava se a família estava em perfeita harmonia ou se havia apenas um carro velho para partilhar: todos eram obrigados a entrar com um processo judicial. Isso significava depender da agenda de um juiz, do cartório judicial e do Ministério Público. A Lei 11.441/07 veio para mudar essa lógica, permitindo que a partilha fosse feita por escritura pública, diretamente no tabelionato de notas.
Essa mudança legislativa trouxe a figura do tabelião para o centro do palco. Ele, que tem fé pública, passa a fiscalizar o recolhimento dos impostos e a vontade das partes, substituindo a homologação do juiz. Para você, isso significa que não há mais a necessidade de esperar os despachos judiciais que levam meses. O ritmo quem dita é a agilidade das partes em reunir a documentação e pagar os tributos.
Contudo, é vital compreender que a via extrajudicial é facultativa. Você pode optar por ela mesmo que já tenha iniciado um processo judicial, desde que desista da ação no fórum. É uma porta de saída para quem está travado na justiça há anos sem ver solução, bastando converter o procedimento para o cartório.
O Princípio de Saisine e a Necessidade da Partilha
Muitos clientes me perguntam: “Doutor, se meu pai morreu, a casa já não é minha?”. Juridicamente, sim e não.[5] Pelo princípio de Saisine, oriundo do direito francês e adotado pelo nosso Código Civil, a posse e a propriedade dos bens se transmitem aos herdeiros no exato instante da morte. Não existe vácuo na titularidade dos bens.
Entretanto, essa transmissão é automática apenas no plano abstrato. Para que você possa vender o imóvel, movimentar a conta bancária ou transferir o carro, é preciso formalizar essa transferência. É aí que entra o inventário. Ele não “cria” o direito de herança, ele apenas o formaliza e individualiza. Sem o inventário, o patrimônio fica bloqueado, gerando o que chamamos de “espólio”, que é um ente despersonalizado que responde pelas dívidas do falecido.
Ignorar essa etapa gera uma bola de neve de problemas. Imóveis ficam irregulares, perdem valor de mercado e não podem ser financiados por futuros compradores. Além disso, o Estado impõe multas pesadas para quem demora a iniciar o processo. Regularizar não é apenas cumprir a lei, é proteger o valor do patrimônio que sua família construiu.
Requisitos Inegociáveis para a Via Administrativa
Para aproveitarmos a agilidade do cartório, a lei impôs travas de segurança. O primeiro e mais importante requisito é o consenso. Todos os herdeiros devem estar em plena concordância sobre a divisão dos bens.[1][3][4][6][7] Se houver um herdeiro brigando pelo faqueiro de prata ou discordando do valor atribuído à casa de praia, a via extrajudicial se fecha imediatamente. O tabelião não é juiz; ele não decide conflitos, ele apenas formaliza acordos.
O segundo requisito é a capacidade civil. Não pode haver herdeiros menores de idade ou incapazes envolvidos.[6] A lógica é que o Ministério Público precisa intervir para proteger os interesses dos menores, e isso tradicionalmente ocorria apenas no Judiciário. Vale ressaltar que, em alguns estados, as Corregedorias já começam a flexibilizar isso se a partilha for ideal (divisão igualitária), mas a regra geral ainda é a da capacidade plena.
Por fim, a presença do advogado é obrigatória.[6] Não se faz inventário em cartório sem assistência jurídica. O advogado assinará a escritura junto com as partes.[6] Isso garante que ninguém seja lesado ou abra mão de direitos por ignorância. Diferente do judicial, onde cada um pode ter seu patrono, no cartório é comum e mais econômico que um único advogado represente toda a família, facilitando a comunicação e a celeridade do ato.
A Burocracia Documental: O Que Levar na Pasta
A fase de coleta de documentos é, na prática, onde o inventário “trava” ou “anda”. A maioria dos atrasos ocorre porque a família descobre, no meio do caminho, que o CPF de um herdeiro está irregular ou que o imóvel não tem escritura.
Documentos do “De Cujus” (O Falecido)
Precisamos provar quem morreu, quando morreu e qual era o seu estado civil.[4][9][10] A Certidão de Óbito é o ponto de partida, mas a Certidão de Casamento (ou Nascimento, se solteiro) é a peça chave. E atenção: ela precisa ser atualizada. Os cartórios exigem certidões emitidas há menos de 90 dias para garantir que não houve divórcio ou novas núpcias não comunicadas.
Além dos documentos pessoais (RG e CPF), é necessário apresentar a certidão de inexistência de testamento.[1][2][4][10] Este documento é emitido pela CENSEC (Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados). Mesmo que a família tenha certeza absoluta de que o falecido nunca fez um testamento, essa certidão é obrigatória para dar segurança jurídica ao tabelião de que ele não está ignorando uma última vontade registrada em outro estado.
Outro ponto crucial são as certidões negativas de débitos. Precisamos provar que o falecido não deixou dívidas com a União, o Estado e o Município.[9] Se houver dívidas fiscais, elas precisam ser quitadas ou parceladas antes da lavratura da escritura. O espólio não se encerra enquanto o Fisco não estiver satisfeito.
Documentos dos Herdeiros e Cônjuges
Para os herdeiros, a lógica é a prova do vínculo jurídico com o falecido.[10] Filhos devem apresentar certidões de nascimento ou casamento atualizadas.[4][9][11] Se um herdeiro for casado, o cônjuge (nora ou genro do falecido) também precisa apresentar documentos, pois dependendo do regime de bens, ele pode ter que assinar a escritura, mesmo que não seja herdeiro direto.
É comum descobrirmos nesta fase erros de grafia em nomes. Um “Souza” com “s” no documento do pai e com “z” no documento do filho pode travar o cartório. Se isso acontecer, será necessário fazer uma retificação administrativa no registro civil antes de prosseguir com o inventário. Por isso, a análise preventiva desses documentos pelo advogado logo na primeira reunião é fundamental.
A questão da união estável dos herdeiros também merece atenção.[4][10] Se um herdeiro vive em união estável não formalizada, o companheiro geralmente não precisa assinar, a menos que se deseje formalizar a união no mesmo ato ou que o regime de bens exija a outorga. A transparência com seu advogado sobre o estado civil real de cada herdeiro evita nulidades futuras.
Comprovação da Titularidade dos Bens
Aqui reside o maior gargalo. Só se inventaria o que está regular. Para imóveis, a única prova de propriedade válida é a Matrícula do Registro de Imóveis atualizada. Contratos de gaveta, recibos de compra e venda ou apenas a posse não transferem a propriedade plena. Se o falecido tinha apenas um “contrato de gaveta”, teremos que inventariar os “direitos aquisitivos” e não o imóvel em si, ou regularizar o imóvel antes.
Para veículos, o documento único de transferência (DUT) e a consulta à base do Detran determinam a propriedade e o valor de mercado (Geralmente usa-se a Tabela Fipe como referência). Dinheiro em conta exige extratos bancários da data do óbito e, muitas vezes, é necessário um requerimento administrativo prévio para que o banco forneça os saldos exatos de aplicações financeiras e ações.
Bens móveis de valor, como joias, obras de arte ou gado, também podem entrar, mas exigem avaliação específica ou acordo entre as partes sobre o valor. Lembre-se que o imposto incidirá sobre o valor declarado. Portanto, superavaliar bens móveis aumenta o custo do inventário desnecessariamente, enquanto subavaliar pode gerar problemas com a Receita Estadual (a “malha fina” do ITCMD).
O Passo a Passo Procedimental: A Execução
Com a teoria entendida e os documentos em mãos, entramos na fase operacional. O procedimento no cartório é linear, mas exige precisão em cada etapa para evitar retrabalho.
A Contratação do Advogado e a Minuta Inicial
O primeiro passo real é a escolha do advogado e do cartório.[8] Uma vantagem do extrajudicial é a livre escolha do tabelionato. Você não precisa fazer o inventário na cidade onde a pessoa faleceu ou onde estão os bens. Pode-se escolher qualquer Cartório de Notas do país.[5] Isso permite buscar cartórios mais ágeis ou com melhor atendimento.
O advogado redigirá a “minuta”. A minuta é o rascunho da escritura pública.[6] Nela, descrevemos quem faleceu, quem são os herdeiros, quais são os bens e, o mais importante, como será a divisão.[1][5] É aqui que definimos quem fica com a casa, quem fica com o carro, ou se tudo ficará em condomínio (propriedade conjunta) entre os herdeiros.
Essa minuta é enviada ao cartório para conferência.[6] O escrevente do cartório vai checar se os dados batem com os documentos apresentados e se a partilha respeita as regras legais (como a meação da viúva e a legítima dos herdeiros necessários). Erros matemáticos na divisão de frações de imóveis são comuns e são corrigidos nesta fase de “bate-bola” entre advogado e cartório.
A Declaração e o Pagamento do ITCMD
Aprovada a minuta, entramos na fase tributária.[3] O inventário só termina quando o Estado recebe sua parte. O imposto incidente é o ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação).[1][2][3][4][5] A alíquota varia de estado para estado, podendo chegar a até 8% do valor de mercado dos bens.
O advogado preenche uma declaração online no site da Secretaria da Fazenda Estadual, detalhando bem por bem e herdeiro por herdeiro. O sistema gera as guias de pagamento. É um momento crítico financeiramente para a família, pois o dinheiro do falecido muitas vezes está bloqueado no banco e o imposto precisa ser pago com recursos próprios dos herdeiros para, somente depois, liberar os bens.
Alguns estados permitem o parcelamento do ITCMD, mas a escritura só é assinada após a quitação total ou a homologação administrativa da isenção, se for o caso. O “Fato Gerador” é a morte, então a lei aplicável é a vigente na data do óbito, o que é importante se houve mudança de alíquotas recentemente.
A Lavratura da Escritura Pública
Com os impostos pagos e as certidões negativas validadas, o cartório agendará a assinatura. É um ato solene. O tabelião fará a leitura da escritura em voz alta para todos os presentes, confirmando a vontade das partes e a veracidade das declarações.
Todos os herdeiros e o(s) advogado(s) assinam o livro notarial. Hoje, muitos cartórios já aceitam a assinatura digital através do sistema e-Notariado, permitindo que herdeiros em cidades ou até países diferentes assinem o inventário sem precisar se deslocar fisicamente, através de videoconferência com o tabelião.
Após a assinatura, o cartório emite o Traslado da Escritura Pública de Inventário e Partilha. Este documento é o título final. Não precisa de homologação de juiz.[1][2][3] Com esse papel em mãos, você vai aos registros de imóveis transferir as casas, aos bancos sacar o dinheiro e ao Detran transferir os carros. O processo de inventário se encerra, iniciando-se a fase de registro.
Pontos de Atenção e Complexidades Específicas[2][4]
Nem tudo são flores e nem todo inventário segue o “caminho feliz” padrão. Existem situações que exigem manobras jurídicas mais sofisticadas dentro do próprio cartório.
A Questão do Testamento no Extrajudicial
Como mencionei nos requisitos, a regra clássica dizia “tem testamento, vai para o judicial”. No entanto, o direito é vivo. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) e diversas Corregedorias estaduais (como SP e RJ) já consolidaram o entendimento de que, se o testamento já foi aberto e registrado judicialmente e não há conflito entre os herdeiros, o inventário pode seguir no cartório.
Isso significa que o procedimento se torna híbrido: faz-se uma ação judicial rápida e simples apenas para o juiz dizer “o testamento é válido”, e com essa autorização, corre-se para o cartório fazer a partilha. Isso economiza anos de processo. Se houver testamento revogado ou caduco, a via extrajudicial é permitida diretamente, bastando provar a invalidade do testamento antigo.
Sobrepartilha Extrajudicial
Às vezes, meses após o fim do inventário, a família descobre uma conta bancária esquecida ou um terreno no interior que ninguém lembrava. Não é preciso anular o inventário anterior.[3] Utilizamos a figura da Sobrepartilha.
A sobrepartilha funciona como um “adendo” ao inventário principal. O procedimento é idêntico: minuta, imposto (apenas sobre o bem novo) e escritura. A vantagem é que a sobrepartilha pode ser feita extrajudicialmente mesmo que o inventário original tenha sido judicial.[2] É uma ferramenta flexível para resolver pendências remanescentes sem reabrir discussões antigas.
Venda de Bens Durante o Inventário (Cessão de Direitos)
Muitas famílias não têm dinheiro para pagar o ITCMD e as custas. A solução jurídica para isso é a Cessão de Direitos Hereditários. Antes de terminar o inventário, os herdeiros podem ceder (vender) seus direitos sobre um bem específico ou sobre a herança toda para um terceiro, por meio de escritura pública.
Na prática funciona assim: o comprador paga um valor adiantado, a família usa esse dinheiro para pagar os impostos e custos, e a escritura final de inventário já sai adjudicando o bem diretamente ao comprador. É uma operação que exige cuidado redobrado na redação contratual para garantir a segurança do comprador, mas é perfeitamente viável e muito comum para viabilizar inventários de famílias descapitalizadas (“ricos em bens, pobres em dinheiro”).
Planejamento Sucessório e Estratégias Jurídicas[2]
O melhor inventário é aquele que foi pensado antes da morte. Embora estejamos falando de resolver o problema pós-morte, entender essas estratégias ajuda a tomar decisões melhores durante a partilha ou para o futuro da sua própria sucessão.
Diferença entre Renúncia Abdicativa e Translativa
Durante a partilha, um herdeiro pode não querer sua parte.[6] Aqui temos uma “pegadinha” tributária clássica. Se ele simplesmente diz “não quero”, isso é renúncia abdicativa. A parte dele volta para o monte e é dividida entre os outros. O imposto incide uma só vez.
Porém, se ele diz “não quero, quero que vá para minha irmã”, isso é renúncia translativa (ou cessão gratuita). Para o fisco, ele aceitou a herança e doou para a irmã. Conclusão: paga-se dois impostos (ITCMD pela morte e ITCMD pela doação).[3] O advogado precisa estar atento à vontade real da família para orientar a forma correta de renunciar sem gerar bitributação desnecessária.
Doação em Vida com Reserva de Usufruto
Esta é a vacina contra o inventário. Os pais podem, em vida, doar os imóveis aos filhos, reservando para si o usufruto (o direito de morar e alugar até morrer). Quando o óbito ocorre, não é necessário fazer inventário desse bem.[1] Basta ir ao registro de imóveis com a certidão de óbito e “dar baixa” no usufruto.
A propriedade plena se consolida nas mãos dos filhos automaticamente. Embora tenha custos de imposto e escritura no momento da doação, isso evita a valorização futura do imóvel no cálculo do imposto e, principalmente, retira da família o fardo burocrático no momento do luto. É uma conta matemática e emocional que deve ser feita.
A Regularização de Imóveis sem Escritura
Muitas vezes, o inventário trava porque o imóvel não tem registro. Uma estratégia jurídica que usamos é fazer o inventário dos “direitos possessórios”.[1][2][3] Inventaria-se a posse. Após o inventário registrado, o herdeiro soma o tempo de posse do pai com o seu próprio tempo e entra com uma ação de Usucapião (que também pode ser extrajudicial hoje em dia).
Essa estratégia transforma um problema insolúvel (imóvel irregular) em uma solução escalonada: primeiro transfere a posse, depois regulariza a propriedade. É o tipo de visão prática que um bom advogado deve trazer para a mesa, em vez de simplesmente dizer “não dá para fazer”.
Quadro Comparativo: Escolhendo o Caminho
Para visualizar melhor onde o Inventário Extrajudicial se encaixa no universo das sucessões, preparei este comparativo direto.
| Característica | Inventário Extrajudicial (Cartório) | Inventário Judicial (Fórum) | Holding Familiar (Planejamento) |
| Velocidade | Rápido (1 a 3 meses em média). | Lento (Anos, dependendo da Vara). | Imediato (Sucessão é automática via contrato social). |
| Custo Inicial | Médio (Tabelas de cartório + Imposto à vista). | Baixo/Médio (Custas processuais podem ser diferidas, mas processo é longo). | Alto (Custos de constituição de empresa e integralização). |
| Requisitos | Consenso obrigatório e herdeiros capazes.[1][2][3][4][5][6][7][10] | Qualquer situação (inclui brigas e menores). | Decisão prévia dos patriarcas em vida. |
| Burocracia | Baixa (Resolvida pelo tabelião e advogado). | Altíssima (Muitas etapas, despachos e recursos).[2][3][4][5][6][8] | Média/Alta (Gestão contábil de uma empresa). |
| Privacidade | Escritura é pública, mas o ato é reservado. | Processos são públicos (salvo segredo de justiça). | Alta (Estrutura societária protege detalhes patrimoniais). |
| Impostos | ITCMD sobre bens (Geralmente valor de mercado). | ITCMD sobre bens (Geralmente valor de mercado). | ITCMD sobre cotas (Pode ter base de cálculo mais vantajosa). |
Realizar um inventário em cartório é, acima de tudo, um ato de cidadania e responsabilidade patrimonial. Você transforma uma situação de perda em organização, garantindo que o legado deixado sirva para o bem-estar dos que ficaram, e não para alimentar disputas ou cofres públicos com multas. Se os requisitos estão preenchidos, não hesite: a via extrajudicial é o caminho mais inteligente e humano para virar essa página.
