Plano de saúde deve cobrir tratamento de autismo? Entenda seus direitos de forma definitiva
Se você chegou até aqui, provavelmente está enfrentando uma das batalhas mais exaustivas que uma família pode travar: a luta pelo desenvolvimento e saúde de um filho contra a burocracia de um plano de saúde.[1] É uma situação que mistura angústia emocional com uma sensação de impotência financeira. Mas eu tenho uma notícia para lhe dar logo de cara: a lei está, majoritariamente, do seu lado.
Não estamos falando de um favor que a operadora de saúde faz ao liberar uma terapia. Estamos falando de um direito contratual e legal, garantido por normas federais e resoluções recentes que mudaram o jogo a favor do consumidor.[1][2] O tratamento do Transtorno do Espectro Autista (TEA) não é cosmético, não é supérfluo e não pode ser limitado por planilhas de custos.[3]
Nas próximas linhas, vamos conversar como se você estivesse aqui no meu escritório. Vou lhe explicar o que a legislação diz, quais são as terapias garantidas, como derrubar as negativas abusivas e, principalmente, como garantir que o tratamento comece o quanto antes. Respire fundo, pois há caminhos muito claros para resolver isso.
O Direito à Cobertura Integral e a Legislação Vigente[1][2][4][5][6][7][8]
A Lei 9.656/98 e a Lei Berenice Piana
Você precisa entender que o contrato de plano de saúde não está acima da lei federal. A Lei 9.656/98, que regula os planos de saúde, estabelece a obrigatoriedade de cobertura para todas as doenças listadas na Classificação Internacional de Doenças (CID), e o autismo (CID F84) está lá. Isso significa que, se a doença é coberta, o tratamento prescrito pelo médico para curá-la ou controlá-la também deve ser garantido.[6] Tentar separar a doença do tratamento é uma manobra que o Judiciário já não aceita mais.
Além disso, temos a Lei 12.764/12, conhecida como Lei Berenice Piana.[2][5][7][9][10] Ela foi um marco civilizatório no Brasil ao instituir a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. O ponto chave aqui é que essa lei considera a pessoa com autismo como pessoa com deficiência para todos os efeitos legais. Isso atrai a proteção não apenas do Código de Defesa do Consumidor, mas também do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Portanto, quando o plano nega uma cobertura, ele não está apenas descumprindo uma cláusula contratual.[1] Ele está violando um conjunto de leis federais que protegem a dignidade humana e o direito à saúde. O argumento de que “não está no contrato” cai por terra quando confrontado com essas normas de ordem pública, que são imperativas e não podem ser afastadas pela vontade da operadora.
A Revolução da RN 539/2022 da ANS
Durante muito tempo, vivemos uma zona cinzenta sobre limites de sessões e técnicas específicas. Mas em julho de 2022, tudo mudou com a Resolução Normativa 539 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).[11][12] Essa norma foi uma resposta direta à pressão da sociedade e do Judiciário. Ela determinou, de forma cristalina, que as operadoras são obrigadas a cobrir qualquer método ou técnica indicado pelo médico assistente para o tratamento de transtornos globais do desenvolvimento.
Isso significa que o plano de saúde não pode mais dizer “cobrimos fonoaudiologia, mas não pelo método que o médico pediu”.[3] Se o médico prescreveu uma técnica específica porque ela traz melhores resultados clínicos para aquele paciente, o plano deve cobrir. A RN 539 retirou a discricionariedade da operadora de saúde em escolher o tratamento mais barato e devolveu o poder de decisão clínica para quem de fato entende do assunto: o médico que acompanha o paciente.
Essa resolução também pacificou a questão da “taxatividade” do rol da ANS para casos de autismo. Para esses pacientes, a cobertura passou a ser ampla e irrestrita quanto às terapias indicadas. Não cabe mais ao auditor do plano de saúde, que nunca viu o paciente, canetar um indeferimento baseado em protocolos administrativos que ignoram a realidade clínica daquela criança ou adulto.
O fim do limite de sessões terapêuticas
Uma das práticas mais cruéis das operadoras era limitar o número de sessões anuais.[3] Imagine que o médico prescrevia 40 horas semanais de terapia para aproveitar a neuroplasticidade infantil, mas o plano só autorizava 20 sessões por ano. A conta não fechava e o tratamento se tornava inócuo. Felizmente, a ANS derrubou esses limites quantitativos para fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas.
Agora, a regra é a prescrição médica.[4][9][11] Se o laudo determina que são necessárias sessões diárias, ou 100 sessões por mês, o plano deve custear exatamente essa quantidade. A limitação de sessões por parte da operadora configura prática abusiva, pois restringe o próprio objeto do contrato, que é a recuperação da saúde do beneficiário.
Você deve ficar atento: se o seu contrato ainda traz cláusulas limitando o número de terapias por ano, essas cláusulas são nulas de pleno direito. Elas não têm validade jurídica frente às novas regulamentações. Não aceite que o tratamento seja interrompido no meio do ano porque a “cota” acabou. Na saúde, não existe cota, existe necessidade clínica.
As Terapias Multidisciplinares Obrigatórias[2][9][10][11]
A Ciência ABA e a “Negativa de Experimentalidade”
A Análise do Comportamento Aplicada, conhecida mundialmente como ABA, é frequentemente o padrão-ouro no tratamento do autismo.[5] Mesmo assim, muitos planos insistem em negar a cobertura alegando que se trata de uma técnica “experimental” ou que não consta no Rol da ANS. Esse argumento é juridicamente frágil e cientificamente ultrapassado. O Judiciário brasileiro já consolidou o entendimento de que a terapia ABA não é experimental, mas sim uma ciência com evidências robustas de eficácia.
Quando o plano nega o método ABA oferecendo uma terapia convencional no lugar, ele está prestando um serviço inadequado. Para o direito, o tratamento deve ser aquele capaz de produzir o melhor resultado possível, e não o mais conveniente para o caixa da empresa. Se o médico assistente fundamentou que o método ABA é essencial para o desenvolvimento cognitivo e social daquele paciente, a operadora não pode substituir essa indicação.
É importante que você saiba que os tribunais superiores têm reiterado que cabe ao médico, e não ao plano, escolher a terapêutica. Se o profissional de saúde atestou que o método convencional não surte efeito e que o método ABA é necessário, a recusa de cobertura gera, inclusive, direito à indenização por danos morais em muitos casos, devido à aflição causada à família e ao retrocesso no tratamento.
Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia e Integração Sensorial
O autismo exige uma abordagem multidisciplinar.[1][2][7][9] Dificilmente um único profissional resolverá todas as questões. A Terapia Ocupacional (TO), especialmente com foco em Integração Sensorial, e a Fonoaudiologia são pilares desse tratamento. Muitas vezes, a criança precisa aprender a lidar com texturas, sons e o próprio equilíbrio para conseguir interagir com o mundo.
Os planos de saúde costumam ter profissionais dessas áreas em sua rede credenciada, mas o problema reside na especialização.[6] Não adianta o plano oferecer um fonoaudiólogo generalista se a criança precisa de um especialista em linguagem para autistas ou em métodos de comunicação alternativa. O direito garante não apenas o acesso ao profissional, mas ao profissional capacitado para aquela demanda específica.[9]
Se a rede credenciada não dispõe de um terapeuta ocupacional com certificação em Integração Sensorial de Ayres, por exemplo, e essa foi a prescrição médica, o plano é obrigado a custear um profissional particular fora da rede. A lógica é simples: a operadora vendeu um serviço de saúde; se ela não tem capacidade técnica de entregá-lo através de seus prestadores diretos, ela deve pagar para quem tem.
Musicoterapia, Hidroterapia e Psicomotricidade
Além das terapias clássicas, outras abordagens como musicoterapia, hidroterapia e psicomotricidade têm se mostrado vitais para muitos pacientes. Antigamente, os planos negavam essas terapias automaticamente, rotulando-as como atividades recreativas ou educacionais, e não de saúde. No entanto, essa visão mudou drasticamente nos tribunais e na própria regulação.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem precedentes importantes obrigando o custeio de musicoterapia quando esta faz parte de um tratamento multidisciplinar prescrito por médico.[11] O entendimento é que, se a atividade tem fim terapêutico e visa a reabilitação ou habilitação da pessoa com deficiência, ela se enquadra no conceito de tratamento de saúde coberto pelo contrato.
Para garantir essas coberturas, o relatório médico deve ser muito claro ao vincular a terapia com o ganho clínico esperado. Não basta pedir “natação”; deve-se pedir “hidroterapia com fisioterapeuta especializado para ganho de tônus muscular e regulação sensorial”. A precisão dos termos técnicos transforma o que o plano chama de “lazer” em um procedimento médico obrigatório.
A Estratégia Processual e o Pedido Liminar
A Tutela de Urgência Explicada ao Cliente
No mundo jurídico, sabemos que um processo pode demorar anos até chegar ao fim. Mas o desenvolvimento de uma criança autista não espera. Existe algo chamado “janela neuronal” ou plasticidade cerebral, que é muito maior nos primeiros anos de vida. Perder tempo discutindo burocracia significa perder oportunidades irreversíveis de desenvolvimento. É aqui que entra a figura da “Liminar”, ou tecnicamente, a Tutela de Urgência.
A liminar é uma decisão provisória que o juiz dá logo no início do processo, muitas vezes em questão de dias ou até horas após a entrada da ação. O objetivo é obrigar o plano de saúde a custear o tratamento imediatamente, enquanto a discussão judicial continua.[13] Para o juiz, a lógica é: “primeiro garantimos a saúde da criança, depois discutimos quem tem razão nos detalhes contratuais”.
Você não precisa esperar o processo acabar para ver seu filho sendo atendido. A estratégia de qualquer advogado especialista nessa área é focar todos os esforços iniciais na obtenção dessa liminar. Ela é a ferramenta que garante que a terapia comece agora, evitando que a demora do Judiciário prejudique a saúde do paciente.[13]
O Perigo da Demora e a Probabilidade do Direito
Para conseguir essa liminar, precisamos provar dois pontos principais para o juiz: o fumus boni iuris (a fumaça do bom direito) e o periculum in mora (o perigo da demora). Parece latim complicado, mas é simples. A “fumaça do bom direito” é mostrar que a lei e o contrato estão do seu lado — e como vimos, com a RN 539 da ANS e a Lei Berenice Piana, isso é muito claro.
Já o “perigo da demora” é o risco de dano irreparável. Aqui, o advogado precisa demonstrar que, se a criança ficar seis meses sem a terapia ABA ou fonoaudiologia, ela pode regredir em suas conquistas ou deixar de adquirir falas e comportamentos que seriam naturais naquela idade. O dano não é financeiro; é físico, psíquico e de desenvolvimento.
É fundamental que essa urgência esteja descrita no laudo médico.[6][9] O juiz não é médico; ele precisa ler no papel um especialista dizendo: “A interrupção ou não início imediato do tratamento causará prejuízos irreversíveis ao desenvolvimento do paciente”. Essa frase é a chave que vira a fechadura da liminar.
O Cumprimento da Liminar e a Multa Diária (Astreintes)
Muitas famílias têm medo de ganhar a liminar e o plano de saúde simplesmente ignorar a ordem judicial. Isso acontece, infelizmente. Mas o sistema jurídico tem um mecanismo de coerção chamado “astreintes”, que é a multa diária pelo descumprimento. Se o juiz manda o plano autorizar a terapia em 48 horas sob pena de multa de R
1.000,00ouR1.000,00ouR
5.000,00 por dia, isso afeta o bolso da operadora.
Se a operadora continuar recalcitrante, o advogado pode pedir o bloqueio de verbas nas contas da empresa para pagar o tratamento particular, ou até mesmo caracterizar o descumprimento como crime de desobediência. A postura do Judiciário tem sido cada vez mais rígida contra planos que zombam de ordens judiciais, especialmente quando envolvem crianças e pessoas com deficiência.
Portanto, a liminar não é apenas um pedaço de papel. Ela é uma ordem estatal com força coercitiva. O advogado deve monitorar dia a dia o cumprimento e peticionar imediatamente caso a operadora crie embaraços burocráticos para liberar as guias de atendimento.
Documentação Necessária para Garantir o Direito[1][2][3][5][9][13][14]
O Laudo Médico Robusto e Detalhado
O documento mais importante da sua vida agora não é o contrato do plano, é o relatório médico. Um laudo genérico com duas linhas dizendo “solicito terapia ABA” é fraco para brigar na justiça. O laudo perfeito precisa ser uma verdadeira narrativa clínica. Ele deve explicar o diagnóstico, o histórico do paciente, as terapias já tentadas e por que elas falharam.
O médico deve detalhar a carga horária necessária, as especialidades envolvidas e, crucialmente, a metodologia a ser aplicada. Deve constar expressamente que aquele tratamento não pode ser substituído por outro sob risco de ineficácia. Quanto mais técnico e detalhado for o laudo, menor a margem para o auditor do plano de saúde questionar a necessidade.
Peça ao médico do seu filho que inclua também a CID (Classificação Internacional de Doenças) e justifique a urgência. Lembre-se: o juiz vai decidir com base no que ele lê. Se o médico não escrever que é urgente, o juiz pode não entender a gravidade da situação. O laudo é a prova rainha do processo.
Comprovantes de Negativa e Protocolos
Nunca, jamais, aceite uma negativa “de boca”. Se você ligou para o plano e o atendente disse “não cobrimos”, exija o número do protocolo e a gravação (você tem direito). Mas o ideal é ter a negativa por escrito. Envie um e-mail formal ou faça a solicitação pelo portal da operadora. A lei obriga os planos a fornecerem a negativa por escrito em até 24 horas, explicando o motivo legal ou contratual da recusa.
Esse documento de negativa é o que constitui o “interesse de agir” para entrar com a ação judicial. Sem ele, o juiz pode dizer que você não provou que o plano recusou o atendimento. Se o plano se recusar a enviar o documento, o número do protocolo de atendimento anotado, com data e hora, já serve como prova indiciária de que você tentou resolver administrativamente.
Guarde também trocas de e-mails, prints de conversas no WhatsApp com a operadora e qualquer comunicação que demonstre a dificuldade que estão impondo. Tudo isso ajuda a construir a narrativa de que a operadora está colocando barreiras indevidas ao acesso à saúde.
Orçamentos e Comprovantes para Reembolso
Se a rede credenciada não oferece o tratamento ou se você já está pagando particular por causa da urgência, a organização financeira é vital. Guarde cada recibo, cada nota fiscal. Mas não é só isso. Para pedir que o plano pague o tratamento particular (quando não há rede credenciada competente), você precisa provar o valor de mercado.
Junte três orçamentos de clínicas diferentes que ofereçam o serviço prescrito. Isso mostra ao juiz que o valor que você está pedindo não é abusivo, mas sim a média praticada pelo mercado. Isso evita que o plano alegue que a clínica escolhida é “de luxo” ou superfaturada.
Se você busca reembolso integral, a tese jurídica é de que a operadora falhou na prestação do serviço direto (rede credenciada), então ela deve arcar com os custos do serviço indireto (particular) sem aplicar as tabelas limitadas de reembolso do contrato. Para isso, os recibos devem ser claros, discriminando cada sessão realizada.
Tabela Comparativa: Cenários de Cobertura
Para facilitar sua visualização sobre as diferenças entre os tipos de cobertura que você pode encontrar no mercado e no sistema público, preparei este quadro comparativo.
| Característica | Plano de Saúde (Rede Credenciada) | Plano de Saúde (Livre Escolha/Reembolso) | Sistema Único de Saúde (SUS) |
| Acesso ao Especialista | Restrito aos profissionais listados no livreto do plano. Muitas vezes há alta rotatividade de terapeutas. | Você escolhe o profissional de sua confiança (inclusive superespecialistas) e pede o reembolso posterior. | Acesso universal, mas sujeito a longas filas de espera e disponibilidade regional nos CAPS ou CERs. |
| Custo para a Família | Mensalidade do plano + coparticipação (se houver). O tratamento direto não deve ter custo extra. | Mensalidade + pagamento integral da consulta particular (o reembolso do plano pode ser parcial ou integral, dependendo do contrato/liminar). | Gratuito. |
| Cobertura de Metodologias (ex: ABA) | Obrigatória por lei, mas operadoras tentam empurrar terapias convencionais ou limitadas. | Obrigatória a cobertura financeira.[6] A briga costuma ser sobre o valor do reembolso (tabela vs. valor real). | Teoricamente possível, mas na prática é muito difícil encontrar centros públicos com estrutura para ABA intensivo. |
| Tempo de Início | Pode demorar devido à falta de agenda na rede credenciada (lei prevê prazos máximos, mas são descumpridos). | Imediato, dependendo apenas da agenda do profissional particular escolhido. | Variável, geralmente demorado devido à alta demanda e escassez de vagas. |
Como você pode ver, a batalha no plano de saúde com rede credenciada costuma ser sobre a qualidade e disponibilidade do prestador, enquanto no plano de livre escolha a briga é pelo valor financeiro do reembolso. Em ambos os casos, a lei protege o consumidor contra abusos.
Não desanime. O caminho jurídico é sólido e milhares de famílias já conseguiram garantir o tratamento de excelência que seus filhos merecem através dele. Se o plano negou, reúna seus documentos, pegue aquele laudo médico detalhado e busque seus direitos.[9][13] O desenvolvimento do seu familiar é o bem jurídico mais valioso que existe, e o Direito reconhece isso.
