Violência Policial e Abuso de Autoridade: O Que Você Precisa Saber Para Não Ser Refém do Estado
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Sente-se confortavelmente e preste muita atenção. Vamos ter uma conversa franca sobre um tema que infelizmente bate à porta de muitos brasileiros. Não estou aqui para usar aquele “juridiquês” que só serve para confundir sua cabeça e justificar honorários caros. Quero que você entenda como a máquina funciona por dentro. Quando falamos de violência policial e abuso de autoridade, estamos tratando do momento em que o Estado, que deveria ser seu escudo, vira a arma apontada para a sua cabeça.

Você precisa compreender que a farda ou o distintivo não são salvo-condutos para a barbárie. Existe um contrato social e leis rigorosas que regem cada movimento de um agente público. Quando eles cruzam a linha, deixam de ser a “Lei” e passam a ser criminosos comuns revestidos de autoridade. Vou te explicar como identificar isso, como a legislação atual protege você e, principalmente, como podemos brigar por seus direitos nos tribunais.

Vamos dissecar esse monstro jurídico em partes digeríveis. Vou te ensinar a olhar para a situação não como uma vítima indefesa, mas como um cidadão munido de direitos e ferramentas legais. Prepare-se para uma aula prática sobre como transformar a injustiça em reparação e, quem sabe, em justiça penal.

A Fronteira entre o Dever Legal e o Abuso de Autoridade

Primeiro precisamos separar o joio do trigo. Nem toda ação policial enérgica é abuso. O policial tem o que chamamos no Direito de “estrito cumprimento do dever legal”. Isso significa que a lei autoriza, e às vezes obriga, o agente a usar a força para conter uma ameaça. Se um sujeito está atirando em via pública, o policial não vai pedir “por favor” com flores na mão. Ele vai agir. A excludente de ilicitude protege o policial que age dentro das regras. O problema nasce quando a ação necessária vira satisfação pessoal, vingança ou mero capricho de poder. É aí que a legalidade morre e o abuso nasce.

Você já deve ter ouvido falar em “uso progressivo da força”. Isso não é apenas teoria de academia de polícia. É um protocolo técnico e jurídico. A força deve escalar degrau por degrau. Começa com a presença policial, passa pela verbalização, uso de força física leve, instrumentos de menor potencial ofensivo (como spray ou taser) e só chega na força letal em último caso. O abuso se configura quando o agente pula os degraus. Se você já estava rendido, deitado no chão, e recebe um chute ou um choque, a escada da legalidade foi quebrada. O policial ignorou a técnica e partiu para a agressão pura e simples.

Identificar o momento exato da ilicitude é crucial para a nossa defesa. O abuso pode ser instantâneo ou continuado. Pode ser aquele tapa “corretivo” na abordagem ou a manutenção de uma prisão ilegal por horas a fio apenas para averiguação. No mundo jurídico, olhamos para a “razoabilidade” e a “proporcionalidade”. Se a reação do agente foi desproporcional à ameaça que você representava, temos um caso. O juiz vai querer saber se havia outro meio menos gravoso para atingir o resultado. Se a resposta for sim, o Estado está em apuros e o agente também.

A Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019)

A antiga lei de abuso era uma piada de mau gosto, com penas brandas que prescreviam rápido. A Lei 13.869 de 2019 veio para mudar o jogo, mas trouxe alguns requisitos técnicos que você precisa entender. O principal deles é o que chamamos de “dolo específico”. Não basta o policial errar. Para ser crime de abuso de autoridade, precisamos provar que ele agiu com a finalidade específica de prejudicar você, beneficiar a si mesmo ou a terceiros, ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal. Isso torna o nosso trabalho de prova mais complexo, mas não impossível. Precisamos demonstrar a intenção por trás do ato.

Um ponto que você deve ficar muito atento é a inviolabilidade de domicílio. A nova lei criminaliza a conduta de invadir ou adentrar imóvel alheio ou suas dependências sem o consentimento do morador e sem determinação judicial. E tem mais: cumprir mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h ou antes das 5h agora é crime tipificado. Aquela história de a polícia chutar a porta de madrugada sem uma razão flagrante de crime acontecendo naquele exato momento pode colocar o delegado e os agentes no banco dos réus. A casa é o asilo inviolável, e a lei de 2019 reforçou as trancas dessa porta contra o Estado.

Outro aspecto prático que vemos todo dia é o uso de algemas. Existe uma Súmula Vinculante do STF, a número 11, que diz que algema é exceção. Só pode usar se houver resistência, risco de fuga ou perigo à integridade física. A Lei de Abuso de Autoridade transformou o desrespeito a essa regra em crime. Submeter o preso ao uso de algemas quando manifestamente não houver resistência ou ameaça de fuga, ou com o objetivo de constrangimento, é crime. Se prenderam você, você não resistiu, e mesmo assim te algemaram para desfilar na frente das câmeras ou dos vizinhos, isso é constrangimento ilegal e abuso de autoridade.

A Responsabilidade Civil do Estado e o Direito à Indenização

Aqui é onde tocamos no bolso, e muitas vezes é a única linguagem que o Estado entende. No Brasil, adotamos a Teoria do Risco Administrativo para a responsabilidade civil do Estado. O que isso significa para você? Significa que não precisamos provar que o policial teve a intenção de te machucar (dolo) ou que foi descuidado (culpa) para que o Estado seja obrigado a pagar. Basta provarmos três coisas: que o agente do Estado agiu, que você sofreu um dano, e que foi a ação dele que causou esse dano (nexo causal). A responsabilidade é objetiva. O Estado assume o risco das atividades de seus agentes.

Quando entramos com uma ação indenizatória, buscamos reparação por tudo o que foi afetado. Temos os danos materiais, que é o prejuízo financeiro direto (o celular quebrado na abordagem, o carro amassado na perseguição, os dias parados sem trabalhar). Temos os danos morais, que compensam a dor, o sofrimento, a humilhação de ser agredido ou preso injustamente. E temos também os danos estéticos, caso a violência policial deixe cicatrizes, marcas permanentes ou perda de membros. Os tribunais têm sido cada vez mais sensíveis a acumular essas indenizações. Você pode receber pelo trauma psicológico e, separadamente, pela cicatriz física que ficou no seu rosto.

Você pode se perguntar se o policial agressivo vai sair impune financeiramente. Em um primeiro momento, quem paga a conta é o Estado (União, Estado ou Município). Isso é bom para você, pois o Estado não “fali” e o pagamento é garantido, ainda que demore via precatórios. Mas depois que o Estado te paga, ele tem o dever de entrar com a chamada “Ação de Regresso” contra o policial. Nessa segunda etapa, o Estado cobra do agente público tudo o que gastou com você, se ficar provado que o agente agiu com dolo ou culpa. É uma forma indireta de punição patrimonial ao mau servidor.

O Processo Administrativo Disciplinar (PAD) e a Corregedoria

Muitos clientes focam apenas no processo criminal ou na indenização, mas esquecem que a batalha mais temida pelo mau policial ocorre internamente: na Corregedoria. As polícias possuem órgãos de controle interno responsáveis por investigar desvios de conduta. O Processo Administrativo Disciplinar, o famoso PAD, é o instrumento para punir infrações funcionais. Diferente do processo judicial, que é público e lento, o PAD corre dentro da corporação e pode ser mais célere, embora muitas vezes sofra com o corporativismo. É fundamental que a sua denúncia seja formalizada também na Corregedoria, e não apenas na delegacia do bairro.

Uma coisa que você precisa ter em mente é a independência das instâncias. O que isso quer dizer? Quer dizer que o policial pode ser absolvido no processo criminal por falta de provas suficientes para condenar (o famoso in dubio pro reo), mas ser condenado no processo administrativo e perder o emprego. As regras para demissão são diferentes das regras para prisão. Na esfera administrativa, analisa-se a conduta ética, a honra da instituição e o decoro da função. Um tapa na cara pode não dar cadeia, mas pode custar o distintivo e a aposentadoria do agente. Por isso, nunca negligenciamos essa frente de batalha.

As penalidades administrativas variam de acordo com a gravidade. Podem ir de uma simples advertência ou repreensão, passar por suspensões de dias ou meses (onde ele fica sem receber salário), até chegar à demissão a bem do serviço público. A demissão é a morte funcional do policial. Além de perder a renda, ele perde o porte de arma funcional e a identidade funcional. Para muitos que baseiam sua identidade no poder da farda, essa é a pior punição possível. Nós, como advogados, devemos acompanhar o PAD, fornecer provas e cobrar agilidade, para evitar que o caso seja arquivado por camaradagem interna.

Estratégias Práticas de Defesa e Produção de Provas

Agora vamos falar de tática. No Direito, alegar e não provar é o mesmo que não alegar. Quando você sofre violência policial, seu primeiro instinto pode ser querer esquecer, tomar um banho e dormir. Não faça isso. A prova técnica é a rainha dos processos. O Exame de Corpo de Delito é fundamental. Você deve ir ao IML ou a um serviço médico oficial imediatamente. Cada hematoma, cada arranhão deve ser documentado. Se o IML for negligente ou superficial, procure um médico particular para um laudo complementar e tire fotos de alta resolução das lesões. Essas marcas no seu corpo são o mapa da condenação do agressor.

Vivemos na era digital e isso é a maior arma contra o abuso de autoridade. Câmeras de segurança de comércios vizinhos, filmagens de celulares de testemunhas e, mais recentemente, as câmeras corporais (bodycams) nas fardas dos policiais são essenciais. Se houver filmagem, solicite a preservação dessas imagens imediatamente através de um advogado. As imagens das câmeras policiais, muitas vezes, “somem” ou apresentam “falhas técnicas” convenientemente. Por isso, o pedido judicial de preservação de provas deve ser feito em caráter de urgência, antes que os dados sejam sobrescritos pelo sistema.

Por fim, não podemos esquecer do Ministério Público (MP). O MP tem a função constitucional de exercer o controle externo da atividade policial. O Promotor de Justiça não é advogado de defesa do policial, ele é o fiscal da lei. Levar o caso diretamente ao MP, especialmente aos grupos de controle externo (como o GAESP em alguns estados), é uma estratégia inteligente. Muitas vezes a polícia civil tem relutância em investigar a polícia militar (e vice-versa), mas o Ministério Público tem autonomia e poder de requisição para investigar ambas. Acionar o MP retira a investigação do círculo vicioso das delegacias.

Quadro Comparativo de Vias Jurídicas

Para facilitar sua visualização, preparei este quadro comparando as três principais vias de responsabilização que podemos acionar simultaneamente.

CaracterísticaVia Penal (Criminal)Via Cível (Indenizatória)Via Administrativa (Disciplinar)
Objetivo PrincipalPunir o agente com prisão ou penas restritivas de direitos.Obter compensação financeira (dinheiro) para a vítima.Punir o agente com sanções funcionais (suspensão/demissão).
Quem é o Réu?O policial (pessoa física) que cometeu o ato.O Estado (União ou Unidade Federativa).O policial (investigado pela própria corporação).
Tipo de ResponsabilidadeSubjetiva (exige prova de dolo/intenção ou culpa grave).Objetiva (basta provar o dano e o nexo causal).Subjetiva (analisa conduta ética e disciplinar).
Resultado para a VítimaSensação de justiça e segurança pública.Reparação financeira pelos danos sofridos.Afastamento de um mau servidor das ruas.
Principal Lei/BaseLei de Abuso de Autoridade (13.869/19) e Código Penal.Constituição Federal (Art. 37, §6º) e Código Civil.Estatutos das Polícias Civis e Militares estaduais.

Entenda que essas esferas correm em paralelo. Podemos ganhar em uma e perder em outra, mas o ideal é uma estratégia integrada que pressione o sistema por todos os lados. Se você ou alguém próximo passou por isso, a passividade é o pior caminho. O sistema conta com o seu silêncio.

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